Filme do dia (308/2021) - "A Balada de Narayama", de Shohei Imamura, 1983 - Norte do Japão, século XIX. Uma pequena comunidade aos pés da montanha luta para sobreviver a despeito da miséria que grassa solta. Ali, a tradição dita que os idosos, ao chegarem aos 70 anos, deverão se encaminhar ao Monte Narayama, onde, ritualisticamente, serão deixados para morrer. Orin (Sumiko Sakamoto) conta com 69 anos e, ainda que ativa e saudável, começa a preparar o terreno para partir para Narayama, independente do desejo de seu filho Tatsuhei (Ken Ogata), que resiste à ideia.
Nessa obra de arte absoluta e definitiva, baseada no livro homônimo de Shichiro Fukazawa, temos a condição humana retratada de maneira crua, desprovida de esteios morais e norteada pelas necessidades mais basais dos seres vivos. Na pequena vila erigida em meio à floresta e aos pés das montanhas, seus moradores levam a vida com extrema dificuldade, lutando contra a fome que insiste em rondá-los. Plantando em um solo pouco fértil e caçando os poucos animais disponíveis na região, homens e mulheres agem guiados pelos instintos, estabelecendo relações sociais frágeis e amorais. No local, é necessário manter as células familiares restritas, pois uma pessoa a mais pode significar a fome e morte dos demais. Assim, uma nova gravidez é vista como um dissabor e recém-nascidos logo são descartados com total desapego. Temos a completa desumanização do indivíduo e da própria sociedade que se pauta por tradições e decisões para se autorregular, independente de qualquer moral norteadora. Os moradores, como animais, se guiam pela fome e pelo sexo, respondendo, com violência, a estímulos diversos. O retrato é brutal e incompreensível para o ser humano advindo de outra realidade. A narrativa é linear, em ritmo lento a moderado. A atmosfera é de desespero - o espectador assiste, com incredulidade, aos acontecimentos normalizados sob aquelas condições. Apesar de ser uma representação da realidade extremamente atroz e difícil de aceitar, o diretor consegue extrair certa poesia daquela miséria, especialmente nos raros momentos de afeto entre os personagens. O roteiro é impecável, sem nenhuma aresta a ser aparada. Visualmente, acredito que seja uma obra belíssima - digo acredito porque a edição "porca" que eu tenho em mídia física me impede de tecer comentários mais sólidos a respeito (a fotografia foi profundamente prejudicada pela má qualidade do DVD). A trilha sonora, infelizmente, sofreu um pouco com o mau gosto oitentista e seu péssimo hábito de colocar tecladinhos em tudo (ainda bem que isso só se manifestou bem no finalzinho da obra). O elenco é encabeçado por um expressivo Ken Ogata como Tatsuhei - o personagem, resistente em abandonar a mãe em Narayama, é um dos poucos que expressa algum afeto por seja lá quem for e sofre com a decisão materna de se encaminhar para a montanha; a idosa Orin é interpretada por Sumiko Sakamoto e a atriz consegue transmitir toda a resignação da personagem em seguir as tradições de seu povo. A obra, tocante, foi agraciada com a Palma de Ouro em Cannes (1984). O filme é maravilhoso e obrigatório para quem quer conhecer melhor a sétima arte. Recomendo, m as aviso que é um filme sofrido.
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