Filme do dia (77/2019) - "A Ilha", de Kim Ki-Duk, 2000 - Em um plácido lago, há inúmeras pequenas casas-flutuantes. Ali, homens pernoitam para pescar, trazendo consigo prostitutas para lhes fazer companhia. Ali também vive uma espécie de zeladora (Suh Jung), que leva e traz os clientes das casinhas-flutuantes. Essa silenciosa mulher vive à parte de tudo o que lhe rodeia e, friamente, observa o movimento de homens com suas acompanhantes. Até que, um dia, chega um hóspede (Kim Yoo-Seok) tão ou mais silencioso que a zeladora, que mudará toda a rotina daquela mulher.

Capcioso. Este é um bom adjetivo para esse filme. A obra aparenta placidez, como o lago que retrata, mas não se engane: sob a aparente calma, há um redemoinho de emoções revoltas, violência e crueldade. A ilha remete aos personagens centrais, em particular à mulher - como uma ilha, ela não se liga a nada, ela não compartilha contatos, ela reina, solene e solitária, em meio às demais pessoas. Ela não fala - ela não é muda, ela apenas não tem a intenção de se comunicar com ninguém, ela é uma ilha, ela quer ser uma ilha. Não há tristeza nessa opção, não há sofrimento pela solidão e, muito menos, comiseração ou empatia por quem quer que seja - a mulher-ilha é fria, despojada de sentimentos ou apegos, ela não desenvolve afetos. A chegada do homem muda parcialmente a mulher-ilha - ela se interessa por ele, seu olhar desperta para aquele jovem misterioso, mas, não espere que aflua um afeto delicado, amoroso, na zeladora; o que surge é um sentimento violento, cheio de mágoa, possessividade, desprezo, quase uma mistura de paixão com ódio. E assim se estabelece uma espécie de relação entre a mulher e o homem. Enquanto a fotografia lindíssima traz aos olhos imagens delicadas do lago e suas casinhas-flutuantes, o roteiro joga na nossa cara um sem-fim de cenas violentas, incômodas, extremamente cruéis e, por vezes, repulsivas, principalmente por retratar o lado mais sórdido e doentio do ser humano. O espectador - pelo menos aquele que está em dia com sua saúde mental e emocional - vai se incomodar com essa obra, é um filme-psicopata. Pessoas muito sensíveis devem evitá-lo. Como em praticamente todos os filmes do diretor (exceto, dos que eu vi, "Pietá" e "Time"), o silêncio e a ausência quase completa de falas toma a narrativa. Mas, diferentemente do que ocorre em "Primavera, Verão, Outono, Inverno ... e Primavera" e em "Casa Vazia", onde o silêncio é poético e até mesmo aconchegante, aqui o silêncio é muito opressivo, cruel, doloroso (para o público). A fotografia, como já disse, é belíssima e aproveita excepcionalmente bem a neblina do lago para criar uma atmosfera meio mágica, meio fantasmagórica. A edição gera um ritmo bastante lento, que destoa pacas do "ruído emocional" e da "violência submersa" da história (às vezes eu me pergunto se alguém entende o que eu escrevo... :P ). É uma obra MUITO sensorial, o espectador vai absorver a história muito mais pela emoção do que pela razão. Quanto às interpretações, Suh Jung é o grande destaque - a atriz consegue transmitir da apatia ao ódio sanguinário à dor mais intensa só com seu olhar!!!! Sem falar nada, ela diz tudo!!!! É uma atriz inacreditável, ficou perfeita na personagem - ah, eu tive zero simpatia pela personagem, eu literalmente a achei uma"psycho" sem volta, monstruosa. Queixa profunda - várias são as cenas de crueldade contra animais, isso me fez muito mal e quase me fez desistir do filme. Achei tais cenas desprezíveis, mas é fato que ajudaram a criar parte do incômodo da obra, obviamente de maneira proposital. Queixa 2 - o uso repetido de cenas filmadas dentro da água, mas visando o lado externo - as achei, além de feias, dispensáveis e insistentes. A obra é muito boa, evidencia a magnitude do talento do diretor, mas fica aquém das obras subsequentes já mencionadas. Vale a pena ver, mas vá com o estômago e o coração preparados que o bicho é forte.
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