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  • hikafigueiredo

"A Mulher Inseto ou Tratado Entomológico do Japão", de Shohei Imamura, 1963

Filme do dia (202/2021) - "A Mulher Inseto ou Tratado Entomológico do Japão", de Shohei Imamura, 1963 - Japão, 1918. Em uma família pobre do campo, após o estupro de sua mãe, nasce a bastarda Tome (Sachiko Hidari). Vivendo uma relação incestuosa com o pai ilegítimo, Tome é entregue ao senhor das terras da família e dele acaba engravidando, dando à luz a outra criança bastarda. Apesar dos familiares quererem "se livrar" da recém-nascida, Tome suplica pela vida da filha e acaba conseguindo mantê-la. No entanto, ela logo precisa afastar-se da criança para trabalhar na cidade, onde tem de se prostituir, enquanto a filha assume o seu lugar na relação incestuosa com o avô.





Um filme pesado cujo título refere-se a uma metáfora da existência da personagem Tome. Como um pequeno e insignificante inseto, Tome existe para sobreviver - inconsciente da sua situação de miséria e violência, despojada de qualquer humanidade e dignidade, a personagem marcha, incessantemente, à frente, sem se dar conta de equívocos, humilhações e abusos e da perpetuação disso tudo na figura da filha. O filme não deixa de ser um retrato da condição feminina no Japão do começo do século XX, quando a violência de gênero, em especial nas classes mais humildes, era a regra, e a mulher era submetida por diversas formas de abusos. A obra incomoda, não apenas pela violência que exibe, mas, principalmente, pela normalização daquelas condutas - seja o estupro de uma mulher, seja a relação incestuosa com o pai de criação, seja a entrega de uma jovem para o senhor de terras ou sua posterior prostituição, nada disso choca ou perturba os envolvidos, inclusive quem protagoniza essas vivências que, em outra realidade, seriam dolorosas e traumáticas. É curioso que, justamente por não agir como uma vítima, por não se importar com a sua situação ou a de sua filha que, de certa forma, segue os passos da mãe, Tome não desperta a empatia do espectador, até porque ela não pensará duas vezes em estender sua miséria a outras mulheres ao se tornar cafetina, no melhor estilo "é o que tem para hoje". É a objetificação, a coisificação feminina elevada ao seu grau máximo, pois retirado qualquer mínimo sinal de humanidade da personagem, que sequer sente - ela apenas age para garantir sua sobrevivência. Assim, o filme trava um diálogo interessante com a obra "Oharu - A Vida de uma Cortesã", de Kenji Mizoguchi (1952), ainda que com leituras diametralmente opostas para a mesma questão da condição da mulher no Japão. A narrativa é linear, com grandes elipses de tempo, num ritmo pausado. A atmosfera é de total indiferença àquela realidade - e reconheço que isso me perturbou demais, principalmente no que se refere à questão do incesto, que, para mim, é tabu imodificável. O filme tem uma fotografia P&B bem contrastada, que auxilia na formação de um clima meio soturno. No elenco, o destaque fica por conta de Sachiko Hidari, que interpreta a protagonista Tome, o que lhe rendeu o Urso de Prata em Berlim. O diretor Shohei Imamura ficou célebre por seus filmes que retratam a miséria, as condições degradantes e desumanizantes no Japão e os dramas do país, em diversos momentos de sua história, como em "Todos Porcos" (1961), no fenomenal "A Balada de Narayama" (1983) ou no devastador "Black Rain" (1989). É um cineasta preciso, cirúrgico, que recomendo demais. Filme instigante, que indico em especial para quem quer se aprofundar no cinema nipônico.

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