Filme do dia (147/2023) – “Além das Nuvens”, de Michelangelo Antonioni, 1995 – Um diretor de cinema (John Malkovich) transita por diferentes cidades europeias em busca de temas e histórias para seu próximo filme. Ele irá se deparar com quatro episódios relacionados ao amor entre homens e mulheres.
No último projeto de Michelangelo Antonioni, encontramos uma questão recorrente do diretor – a incomunicabilidade, que permeia, em maior ou menor grau, os quatro episódios. Em todas as histórias, existe uma profunda dificuldade de comunicação entre os personagens, os quais claramente anseiam por coisas diferentes de seus parceiros. Outro elemento que está muito presente é a insatisfação – nenhum dos personagens parece estar bem e estável, todos se encontram, de alguma forma, em conflito e em busca de algo, possivelmente intangível. Na narrativa, o fio condutor que cimenta os quatro episódios é a presença do diretor de cinema. Podemos dizer que a obra é, antes de tudo, metalinguística, pois trata, em grande parte, do ofício do diretor de cinema, que nos serve de narrador e confia, ao espectador, seus medos, dificuldades e inspirações para seu próximo filme. É essa narração autodiegética que irá conduzir o público pelas diferentes historietas de “amor”. Sim, entre aspas, porque ali há mais desejo e paixão do que exatamente amor. Outro elemento comum aos quatro episódios é sua dimensão trágica – não teremos, em nenhum deles, um sentimento calmo, plácido e estável, todos envolvem conflito, dúvida e sofrimento. Em linhas gerais, a primeira história versa sobre um amor platônico que não se realiza apesar dos sentimentos compartilhados entre os não-amantes; a segunda história trata do envolvimento do próprio diretor de cinema com uma mulher que guarda um assustador passado, mas que cedo ela própria trata de revelar; a terceira história discorre sobre um triângulo amoroso e os desencontros entre casais; e o último episódio, expõe um amor impossível e uma decisão definitiva. Vale a pena destacar alguns pontos da obra. Numa leitura atual – como sempre digo, entendo que a obra foi realizada em uma outra época, onde existia uma realidade diferente, mas a passagem do tempo nos leva a novas interpretações, das quais não consigo me despojar -, vejo, nestas supostas histórias de “amor”, uma concepção extremamente machista deste sentimento e uma romantização muito masculina de relações e contatos que, numa perspectiva feminina, seriam vistos como profundamente tóxicos e abusivos. Na primeira história, o personagem masculino, ao ser rejeitado num primeiro momento, vinga-se do seu objeto do desejo, frustrando-o, num movimento bastante infantil; na primeira, segunda e quarta histórias, os personagens masculinos “perseguem” suas amadas, insistem em se aproximar delas, independente de suas vontades; a terceira história discorre sobre um triângulo amoroso onde ambas as mulheres sentem-se frustradas, traídas e menosprezadas pelo personagem masculino, que, inclusive, trata-as com certo desdém. Ora, todos os episódios vêm com uma carga massiva de machismo e misoginia que me incomodou demais. A história mais aceitável numa perspectiva feminina é a segunda – pelo menos é a única em que ambos os amantes parecem à vontade da relação. Outro incômodo que surge de uma leitura feminista – a absoluta padronização física das mulheres objeto de desejo. Todas as amantes eram fisicamente idênticas, como se fossem uma única mulher, e absolutamente dentro do padrão socialmente aceito. A única que escapou um pouco do padrão foi a belíssima Fanny Ardant e só mesmo por ser meio “grandalhona”. Okay, na cena de fechamento, o diretor abraçou outras possibilidades, outros “corpos” (menos magros, menos jovens...), mas isso no “canto do cisne” da obra. Mas, retomando, entendo que essa é uma interpretação bem atual e com viés feminino (e que, muito provavelmente, será incompreendido pelo leitor do gênero masculino). Formalmente a obra é impecável – e não se trata de um filme “padraozão” hollywoodiano: ele é bastante autoral, foge do lugar comum, sem perder, em momento algum, a excelência técnica. Na fotografia, o que me chamou mais a atenção foram alguns movimentos de câmera sofisticados, acompanhando a movimentação dos personagens (que passam o tempo todo andando e se mexendo). Também é necessário destacar os enquadramentos sofisticadíssimos e muito plásticos, em especial nas cenas com escadas (ô obsessão por escadas, misericórdia!!!). A edição também se mostrou excepcional, não restando cenas desnecessárias – é um filme de edição enxuta e ritmo muito agradável. O elenco traz intérpretes do quilate de John Malkovich, ótimo como o diretor – a sua reação na cena em que a sua moça de interesse revela seu segredo é impagável!!! Temos, ainda, a já mencionada Fanny Ardant (diva!), Jean Reno (amo!), Peter Weller, Sophie Marceau, Chiara Caselli e até, em uma adorável ponta, os geniais Marcello Mastroianni e Jeanne Moreau (não há reverência que chegue). É um filme bastante feliz sobre o desencontro entre amantes. Gostei, em especial do segundo e quarto atos. Vale a pena e ainda é um Antonioni. Recomendo.
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