“Até os Ossos”, de Luca Guadagnino, 2022
- hikafigueiredo
- há 9 minutos
- 3 min de leitura
Filme do dia (65/2025) – “Até os Ossos”, de Luca Guadagnino, 2022 – Maren (Taylor Russell) é uma jovem de 18 anos que vive uma estranha condição: ela tem compulsão por carne humana e precisa ter muito autocontrole para não devorar pessoas à sua volta. Quando seu pai, sabedor de sua condição e exausto pela eterna vigilância, a abandona, Maren sai em busca da mãe que a deixara ainda bebê. No caminho, ela acaba por descobrir que não é a única de sua “espécie”, oportunidade em que conhece Lee (Timothée Chalamet), por quem se apaixona.

Neste estranhíssimo road movie, temos uma fusão bem equilibrada dos gêneros terror e romance, além de uma história que, evidentemente, exige um esforço interpretativo para ir além do óbvio. Discorrendo sobre um assunto bizarro e indigesto (com o perdão pelo trocadilho involuntário), o filme apresenta indivíduos que sofrem de uma enorme compulsão por carne humana. Mas não se engane: o canibalismo, aqui, é utilizado como uma metáfora para a exclusão social e para qualquer condição atípica que leve pessoas a serem vistas e tratadas como diferentes e párias sociais. A narrativa segue a linha da jornada pelo autoconhecimento, autoaceitação, adaptação às condições impostas e luta pela sobrevivência. A história acompanha a busca da personagem Maren pelas suas origens, por conhecer-se como ser humano “diferente”, por aceitar e aprender a viver com sua excepcional condição e lidar com as rejeições e a culpa. Em sua jornada, Maren descobre que existem outros como ela e, assim, consegue encontrar algumas respostas e certo conforto. Mas é com Lee que Maren alcança o total acolhimento e aceitação, podendo, finalmente, despir-se de máscaras e receios e chegando a uma comunhão que vai além das questões físicas. O filme, por outro lado, também discorre sobre obsessão e relacionamentos tóxicos em variadas perspectivas – tanto Maren como Lee, em diferentes momentos de suas vidas, têm de lidar com relações de abuso, violências físicas e psicológicas, perseguições e ameaças diversas às suas vidas. Eu, que usualmente gosto destes filmes que trazem alegorias e exigem uma leitura interpretativa, logicamente gostei do “plot”, mas senti o roteiro um pouco irregular, com passagens mais ou menos trabalhadas ou cujas coerência ou relevância se mostraram um pouco frágeis. Ainda assim, para mim o saldo foi positivo. Destaco a forma como foi colocada o crescimento e empoderamento da protagonista e como o canibalismo foi abordado, sem cair para nada graficamente explícito ou repulsivo. Destaco, ainda, a maneira como foram construídas as presenças desconfortáveis dos personagens Sully e Jake – o espectador consegue ter a perfeita noção de como Maren está se sentindo em relação a eles, mesmo que não exista qualquer evidência do motivo pelo desconforto (algo como um sexto sentido, sabe?). Por fim, enfatizo a escolha e trabalho do elenco: Taylor Russell consegue transmitir um misto de força e fragilidade em sua personagem Maren – ainda que a protagonista tenha o impulso assassino e, por vezes, acabe cedendo a ele, ela é frágil e chega a se mostrar inocente e confusa por sua condição; Timothée Chalamet, que interpreta Lee, traz mais conforto e determinação ao personagem – ele lida melhor com sua condição e traz o acolhimento que Maren necessitava; Mark Rylance está perfeito como Sully – o ator, monstruoso, imprime um coisa que eu nem sei explicar ao seu personagem, mas que é responsável por um sentimento de aversão profunda no espectador (e, claramente, em Maren); Michael Stuhlbarg, outro ator fantástico, interpreta Jake e, como Rylance, consegue trazer um peso, uma “coisa ruim”, ao seu personagem, algo totalmente necessário para a história. No elenco, ainda, Chloë Sevigny, Anna Cobb, Jake Horowitz, David Gordon Green, André Holland, dentre outros. Eu vejo, na jornada de autoconhecimento e aceitação da protagonista, um diálogo bem forte com o maravilhoso “Me Chame pelo Seu Nome” (2017), do mesmo diretor e com os mesmos Chalamet e Stuhlbarg, ambos fantásticos. O filme foi indicado ao Leão de Ouro no Festival de Veneza (2022), mas acabou ficando com o Leão de Prata (melhor direção), no mesmo festival, tendo ainda várias indicações para categorias diversas em muitos festivais e prêmios de associações de críticos. Apesar do estranhamento pelo tema abordado, eu gostei de obra e recomendo para quem quer ter uma experiência diferente e meio esquisita. Segundo o Justwatch, está facinho de assistir, tem na Netflix.
Comentários