Filme do dia (85/2022) - "Bicho de Sete Cabeças", de Laís Bodanzky, 2000 - Neto (Rodrigo Santoro) é um jovem de classe média que tem um relacionamento conflituoso com seu pai Wilson (Othon Bastos). Certo dia, Wilson descobre, entre as coisas de Neto, um cigarro de maconha. Acreditando estar fazendo o melhor pelo filho, Wilson o interna em um hospital psiquiátrico, dando início ao calvário do rapaz.
Livremente inspirado no livro autobiográfico "O Canto dos Malditos", de Austregésilo Carrano Bueno, o filme abarca duas linhas de discussão: a primeira enfoca as relações familiares, com destaque para a relação de Neto com Wilson. Partindo de um convívio conturbado entre o protagonista e o pai, verticalizado e sem qualquer diálogo, a obra discorre sobre os problemas existentes nos relacionamentos familiares pautados na rigidez e incompreensão, expondo as feridas criadas pelo contato abusivo e pouco empático. Ainda que Wilson não surja como um indivíduo maléfico - ele crê piamente estar fazendo o bem para o filho -, o fato de não conseguir ouvir as questões de Neto, aliado à ignorância e autoritarismo do personagem, transformam Wilson no pivô do martírio do jovem ao interná-lo em um hospital psiquiátrico. Chegamos, então, à segunda linha de discussão - os horrores vividos pelos internos dentro dos manicômios. Durante décadas, os hospitais psiquiátricos foram usados como "depósitos de pessoas indesejadas" - fossem indivíduos com condições psiquiátricas, adictos de diversas naturezas, filhos rebeldes ou moças que ousaram engravidar fora do casamento, os manicômios serviam para tirar as pessoas problemáticas do meio social, ocultando-as dos olhos da sociedade. Nestes locais, os internos eram submetidos a condições degradantes, a procedimentos experimentais sem qualquer comprovação científica, ao tratamento cruel de médicos e enfermeiros despreparados e à total falta de recursos, que levavam à desumanização dos pacientes, transformados em meras "coisas". O filme expõe as chagas dos hospitais psiquiátricos como poucas obras ousaram, tornando-se um verdadeiro manifesto pela luta antimanicomial. É impossível ficar incólume ante os dramas vividos por Neto e pelos demais internos nos hospitais psiquiátricos retratados. O roteiro, maravilhosamente construído pelo roteirista Luiz Bolognesi, parte de uma carta escrita por Neto para o pai para dar início a um grande flashback que retratara a vida do protagonista antes de sua internação e durante sua primeira estadia em um hospital psiquiátrico - sim, pois não basta uma experiência nestes locais amaldiçoados, tem de haver uma segunda incursão ao inferno! O ritmo da obra é bem marcado, numa atmosfera de pesadelo e horror. A fotografia do filme é bastante expressiva e ousada, assumindo, com frequência, um ponto de vista subjetivo - em várias sequências, as imagens surgem desfocadas ou confusas, retratando o estado de consciência alterado dos personagens. Em outros momentos, a câmera, nervosa, atribui-se um tom documental, assumindo um olhar curioso sobre o que está acontecendo na história. A maneira como os hospitais psiquiátricos são retratados é assustadora (e não tenho dúvidas que a realidade conseguia ser infinitamente pior). A música traz obras de André Abujanra e Arnaldo Antunes, além da canção título de Zé Ramalho e Geraldo Azevedo, interpretada, aqui, por Zeca Baleiro. Para coroar a obra, atuações viscerais de Rodrigo Santoro como Neto - no que, para mim, é sua melhor interpretação no cinema - Othon Bastos como Wilso; Cássia Kiss como a mãe do rapaz; Caco Ciocler como o interno Rogério; e os incríveis Gero Camilo como o interno Ceará e Marcos Cesana como o paciente Biu. O filme é uma porrada, trazendo a direção competente de Laís Bodanzky em sua melhor forma (este é meu filme predileto da diretora). A obra é imperdível! Recomendo muito! PS- complementando a experiência, aconselho assistir ao filme "Nise - O Coração da Loucura" (2015) e ler o livro "Holocausto Brasileiro", de Daniela Arbex.
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