Filme do dia (128/2023) – “Caché”, de Michael Haneke, 2005 – Georges Laurent (Daniel Auteuil) é um célebre apresentador de um programa literário na televisão. Sua esposa Anne (Juliette Binoche) trabalha no ramo editorial. Juntos, fazem um casal sofisticado e em aparente harmonia. Ocorre que o casal começa a receber fitas de vídeos com estranhas imagens da frente de sua residência, que, posteriormente, incluem desenhos perturbadores, a sugerir que estão sendo observador e perseguidos. Esses acontecimentos desestabilizam a família, que passa a revelar uma nova dinâmica, trazendo, para a superfície, coisas que estavam enterradas.
Filme genial de um diretor criativo e cirúrgico, “Caché” trabalha com temas usuais para Michael Haneke – a violência, a hipocrisia e a culpa. Mas, antes de dissecar detalhes do filme, cabe mencionar que a obra exige uma leitura um pouco mais profunda, ela não é óbvia e, tampouco, de fácil interpretação e assimilação. Além, disso, o diretor trabalha em dois “níveis” – há o conteúdo, mas também há uma importante contribuição da forma. A obra se inicia com uma imagem fixa de um recorte qualquer de uma rua enquanto os créditos do filme vão sendo incluídos na imagem. Depois de alguns minutos, quando os créditos cessam de aparecer, percebemos que aquela imagem é o que o casal protagonista está assistindo na televisão e é o conteúdo de uma fita de vídeo deixada diante da porta da casa deles, justamente o objeto da gravação. Esse recurso de trazer exatamente o que os protagonistas veem para o espectador será usado várias vezes ao longo do filme, legando um caráter metalinguístico à obra e a imbuindo de um significado escuso – nem tudo o que se vê é a realidade, há mais para saber do que está à mostra na superfície. Esta fita de vídeo é o estopim para desestruturar o casal, pois revelará uma série de questões referentes a ele, em geral, e a Georges, em particular. É interessante que, diferente do que os diretores comumente fazem, não há a introdução prévia da situação “normal” e a apresentação posterior do elemento problematizador – aqui, logo na primeira cena, já estamos diante da questão excepcional, daquilo que será o componente desagregador e que dará o impulso para a história. Voltando à narrativa, gradativamente novos vídeos surgirão, agora com desenhos quase infantis, mas profundamente perturbadores, que remetem ao passado de Georges e que revelarão, por um lado, sua natureza egoísta, maquiavélica, violenta e sem empatia, e, por outro, uma culpa não assumida. Aos poucos, a vida ideal, equilibrada e civilizada de Georges e sua esposa cairá por terra, expondo que, na verdade, tudo não passava de uma imagem, uma representação para a sociedade e não sua essência. O jeito afável e sofisticado de Georges também se mostra frágil e ele passa a exibir um comportamento arrogante, agressivo e acusador. Há, na narrativa, um claro questionamento acerca de quem está certo e quem está errado, quem é a vítima e quem é o agressor, quem está agindo e quem está reagindo. Existem sutilezas difíceis de apontar sem dar spoilers e sem estragar a leitura pessoal do coleguinha, mas acredito que tenha indicado uma direção para a interpretação da obra. Por fim, mas não menos importante, o filme trará um pouco da tensão existente entre a França e suas ex-colônias, em especial, a Argélia, transmitindo para esse mundo particular algo que se vê em uma escala bem maior: quem é a vítima e quem é o algoz? O imigrante de uma terra que foi explorada até o limite da guerra civil? O antigo colonizador que agora sofre com a violência de seus ex-colonizados? Quem está invadindo o espaço de quem? A obra é riquíssima em leituras e interpretações, levanta questionamentos importantes e profundos e é formalmente criativa – enfim, um filmaço! A crueza das imagens é, ainda, levada para a trilha sonora – inexiste trilha musical na obra! Não há, em momento algum, uma música para amenizar ou para “arredondar” as sensações e os sentimentos despertos – tudo é seco, cru, direto. Vale destacar o trabalho brilhante do elenco – Daniel Auteuil, que dispensa apresentações, é quem carrega boa parte do peso da obra, pois é seu personagem Georges o elemento central da culpa, hipocrisia e violência já mencionados – e o ator consegue transmitir toda a minúcia do personagem; Juliette Binoche, ótima como sempre, também traz tensão à personagem Anne, muito embora esteja um pouco à margem das questões centrais que movem Georges. Maurice Bénichou interpreta Majid e seu pouco tempo em cena não lhe tira o brilho de uma interpretação bastante significativa. Walid Afkir interpreta o filho de Majid e mostra a que veio na cena da emissora de televisão – destaque para o trecho do elevador, muito perturbador. Por fim, Annie Girardot interpreta a mãe de Georges e também está incrível (o esquecimento dela de Majid é muito revelador acerca da arrogância da classe média intelectualizada, francesa ou não). Pela temática, vejo um diálogo deste filme com as obras “O Homem ao Lado” (2009) e “Aquarius” (2016), pois ambas retratam essa imagem frágil de homens superficialmente gentis e educados, mas que, nas entranhas, são monstruosos. Michael Haneke foi agraciado com o prêmio de Melhor Diretor em Cannes (2005) pela obra, a qual foi indicada a diversas categorias no Prêmio César (2006), na categoria Melhor Filme Estrangeiro no Critics’ Choice Award (2006) e em outros festivais e premiações. O filme é fenomenal, vale muito a pena!!!! Recomendo demais!!!
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