Filme do dia (94/2022) - "Cerimônia Solene", de Nagisa Oshima, 1971 - O protagonista Masuo (Kenzo Kawarasaki) e sua prima Ritsuko (Atsuko Kaku) viajam a uma ilha deserta ao encontro de seu primo Terumishi (Atsuo Nakamura). Ao longo da viagem , Masuo relembra momentos de sua vida, sempre marcado por cerimônias, onde segredos sombrios de sua poderosa família são revelados.
Nagisa Oshima figura como um dos mais célebres e talentosos cineastas japoneses, ao lado de Kurosawa, Ozu, Mizogushi, Imamura, Shindô e Naruse. Eu fiquei encantada com algumas obras dele, das quais destaco os incríveis "O Enforcamento" (1968), "Tabu" (1999), "Furyo" (1983) e "O Império dos Sentidos" (1976). Mas confesso que não estava preparada para a magnitude de "Cerimônia Solene". A sensação que eu tive é que foi um encontro do cinema japonês com Ingmar Bergman, tal a densidade da obra e o quanto ela enfia o dedo na ferida, no caso, a sociedade japonesa, com suas tradições, seus rituais e, claro, sua hipocrisia. Eu imediatamente me lembrei de críticas similares que encontramos no estupendo "Gritos e Sussurros" (1972), de Bergman, o qual trava um poderoso diálogo com "Cerimônia Solene". Também vi ecos da obra no fantástico "Festa de Família" (1998), de Vinterberg, outro filme que aproveita um grande encontro familiar para tecer críticas à sociedade. Nesta obra, Oshima pontua momentos de uma renomada família japonesa - a tradicional família Sakurada - para destroçar qualquer mito de honradez, justiça, compostura e correção da sociedade japonesa. Através de algumas das principais cerimônias familiares - em especial, casamentos e funerais -, o diretor vai revelando toda a sordidez escondida sob um manto de austeridade e falso equilíbrio daquela família, descortinando uma série de condutas francamente abusivas, cruéis, mentirosas e, acima de tudo, hipócritas daqueles supostos sustentáculos da sociedade japonesa. E Oshima orquestra tão bem essa maravilhosa queda de máscaras que é impossível ficar indiferente à obra!!! A narrativa é não-linear, alternando a tensa viagem e os diversos momentos do passado dos personagens, tendo, como fio condutor, as memórias do protagonista Masuo, um reles joguete nas mãos de seus familiares, em especial de seu avô, patriarca da família. O ritmo é moderado, bem menos lento do que o tradicional cinema clássico japonês. A atmosfera é opressora e tensa - "Cerimônia Solene" é um dos filmes japoneses mais sensoriais que já assisti, aproximando-se, também nesse quesito, do cinema bergmaniano (quando digo que uma obra é sensorial, quero dizer que ela ultrapassa a simples compreensão racional; o espectador passa a compreendê-la também em um nível emocional, subjetivo, não-racional, aproximando-se, como nunca, de sua natureza artística). A fotografia do filme, belíssima, traz consigo algo de sombrio, usando, para tanto, de um rico jogo de luzes e sombras. A direção de arte, fabulosa, reproduz o requinte e as tradições culturais das famílias japonesas mais ricas e poderosas. A trilha musical traz uma agoniante música dissonante (que me lembrou as obras de Yorgos Lanthimos). O elenco, como tudo mais no filme, é espetacular - Oshima era um exímio diretor de atores, fazendo irromper, de cada intérprete, um trabalho bastante visceral. Kenzo Kawarasaki consegue exprimir toda a dor e mágoa do protagonista Masuo, um homem que foi massacrado por sua família até se tornar uma mera sombra do que poderia ter sido; Atsuko Kaku traz, da mesma forma, para sua personagem Ritsuko, uma tristeza milenar daquilo que não pode ser vivenciado; Akiko Koyama é outra atriz cujo o sorriso esconde um mar de mágoas e abusos de sua personagem Satsuko - talvez a personagem mais aviltada de toda a obra; como Terumishi, um bom Atsuo Nakamura, um personagem um pouco menos exigido que os demais; no papel do poderoso patriarca, Kei Sato, o "queridinho" de Nagisa Oshima, numa interpretação grandiosa de um notável canalha. O restante do elenco - a família era grande! - consegue manter a alta qualidade de interpretação dos personagens principais. São muitas as passagens espetaculares do filme, mas, a que mais me sensibilizou, foi a cerimônia do casamento - poucas vezes vi a submissão e a humilhação tão bem representadas em um filme. Sinceridade... a obra é MAGNÍFICA!!!! Fiquei extasiada, queria gritar aos quatro cantos: VEJAM!!!! Recomendo muito, muito, muito...
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