Filme do dia (138/2022) - "Conto de Fadas", de Aleksandr Sokurov, 2022 - No purgatório, Stalin, Hitler, Mussolini e Churchill aguardam para serem aceitos no que acreditam ser o Paraíso. Enquanto esperam, dialogam entre si e afastam-se ou aproximam-se uns dos outros de acordo com sua conveniência.
Usando o farto material fotográfico disponível das personalidades envolvidas na história, Sokurov cria diálogos hipotéticos, possíveis e impossíveis, entre os personagens. Através de tais dizeres, o diretor caracteriza e critica as diversas ideologias sustentadas por tais líderes ao seu tempo. A obra, utilizando-se sobejamente da tecnologia deepfake, a qual permite escanear um rosto, ponto a ponto, e criar expressões e movimentos labiais através de inteligência artificial, imagina a interação - por vezes pacífica, por outras raivosa - entre os principais líderes europeus à época da Segunda Guerra. Através das falas - falsas, criadas pelo deepfake - dos personagens, o espectador adentra àquele mundo, àquele momento histórico, e "presencia" a disputa pelo poder e hegemonia daqueles líderes. É bastante claro que a intenção do diretor é trazer, à discussão, a questão de que tais ideologias permanecem entre nós e que a ausência dos líderes que ostentavam tais bandeiras não significou o desaparecimento destas ideologias. Vou além: sem incluir qualquer imagem, dado ou notícia atuais, o diretor aponta para o perigo de um novo despertar destas ideologias, claramente crítico ao surgimento de diversos líderes extremistas mundo afora . Assim, o que está em discussão na obra é muito menos o destino espiritual dos líderes retratados do que o futuro sombrio do planeta e das sociedades frente a uma nova onda de regimes extremos- de direita, nos moldes do nazismo alemão ou fascismo italiano; ou de esquerda, nos moldes do stalinismo russo. Eu diria que o filme tem um tempo "atemporal", ou seja, as personalidades mostradas convivem com várias versões de si mesmas de diferentes épocas (e por mais que possamos teorizar o que o diretor quis dizer com a profusão de Hitlers, Mussolinis, Stalins e Churchills ao longo das cenas, tenho para mim que a razão foi puramente pragmática, relacionada ao material fotográfico que existia disponível). O ritmo é bastante lento, adequado à sensação de "tempo suspenso" da narrativa. A atmosfera encontra-se no meio do caminho entre o onírico e o claramente "puro pesadelo" - as imagens dos líderes, quase sempre trabalhadas pelo deepfake, estão sempre envoltas por uns "borrões" que inferimos tratarem-se das almas desgarradas aguardando seu destino tanto quanto os protagonistas, e devo confessar que a ideia em si me causou certo desconforto. Aliás, o filme também é curioso por misturar fotografias, animações e imagens de computador "tudo ao mesmo tempo agora", criando todo um ambiente surrealista e, ao menos para mim, angustiante. Ao longo da narrativa, não temos a inserção de qualquer ser humano real, vivo, de modo que não há elenco aparente algum. Por outro lado, a narrativa traz "as participações especiais" de Jesus Cristo e Napoleão Bonaparte, ali apenas para pontuar algumas questões. Diria que a obra dialoga com outras do diretor que também recriam personalidades do passado como "Arca Russa" (2002) e "Francofonia" (2015) e muito possivelmente com uma filmografia ainda anterior, de cunho político, da qual apenas ouvi falar, mas ainda não tive a chance de ver. Não vou dizer que a obra seja de fácil apreensão e digestão por conta dos diálogos intermináveis, muitos dos quais referentes a questões e momentos históricos, mas é, sem dúvida, uma experiência interessante e instigante. Eu curti e recomendo.
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