- hikafigueiredo
"Inocência Roubada", de Andréa Bescond e Éric Métayer, 2018.
Filme do dia (87/2020) - "Inocência Roubada", de Andréa Bescond e Éric Métayer, 2018 - A pequena Odette (Cyrille Mairesse), de apenas oito anos, começa a ser sexualmente abusada por um amigo de seus pais. Os abusos duram anos. Já adulta, Odette (Andréa Bescond) refugia-se na dança para superar o trauma de infância.

Ufffff. Aqui o terreno é mais que espinhoso. O tema central da obra é a pedofilia e quão próximo os abusadores podem estar das vítimas. Não é um assunto nem fácil, nem agradável de apresentar e discutir e, logicamente, a obra encontra problemas para discorrer acerca dele. Baseado no caso real da diretora Andréa Bescond, a qual foi vítima de abusos sexuais na infância, o filme trata do tema de uma maneira um pouco truncada. A narrativa é composta por diferentes tempos - de um lado, o presente, com Odette adulta, tentando "trabalhar" seu trauma em sessões de terapia; de outro, as memórias que Odette tem e apresenta, de maneira absolutamente desordenada, para a sua terapeuta. Os dois momentos se intercalam e, por vezes, "entram" um no outro. Na realidade, tenho a sensação de que o próprio filme (assim como, provavelmente, a peça teatral do qual foi adaptado) foi parte do processo terapêutico da diretora e atriz para superar o trauma e, sendo assim, a construção da narrativa não é minimamente linear. Em outras palavras: o filme e a peça foram formas de "terapizar" o trauma e, como qualquer processo psicoterapêutico, foram trabalhados de maneira desordenada até tomarem uma forma mais clara e racional. Nossa... difícil até de explicar rs. Tenho a impressão que os diretores quiseram tratar deste tema, mas não quiseram aprofundá-lo em excesso, talvez por ser por demais doloroso para a diretora ou talvez para não causar um mal estar excessivo no público. Apesar da narrativa um tanto confusa, não há como não considerar uma virtude a disposição em tratar de temática tão pesada e complexa. Aliás, cabe comentar que o filme não trata somente dos abusos por parte do estuprador, mas, ainda, da vivência da vítima com uma evidente mãe narcisista (lá pelas tantas, tive mais raiva da mãe de Odette do que do abusador, para vocês terem uma ideia....). Definitivamente, não é uma obra fácil de assistir, falar sobre ou descrever, principalmente pela opção por uma narrativa tão pouco convencional, que mistura realidade, memórias, devaneios, desejos e dores da diretora e atriz Andréa. Gostei bastante das cenas de dança, onde Odette consegue, em parte, expressar parte de sua raiva, revolta, dor e medo.A interpretação de Andréa Bescond é visceral, em especial quando dança, imagino quão difícil deve ter sido fazer o filme; a atriz mirim Cyrille Mairesse faz bonito com seu olhar de desespero mudo e rosto angelical; Pierre Deladonchamps tem a tarefa ingrata de interpretar o asqueroso pedófilo e se sai bem com seu jeito docemente ameaçador, manipulador e chantagista; Karin Viard interpreta a mãe de Odette e consegue expor toda a escrotidão de uma mãe narcisista - ótima atriz, ganhou o prêmio César de Atriz Coadjuvante pelo papel. Assunto necessário, o filme junta os pedaços da vítima e nos dá, sem qualquer lógica ou ordem, para entendê-la e (re)montá-la. Cinematograficamente, a obra não é nenhuma excepcionalidade, mas vale pelo tema e merece ser vista.