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"Machuca", de Andrés Wood, 2004

hikafigueiredo

Filme do dia (207/2021) - "Machuca", de Andrés Wood, 2004 - Chile, 1973. Durante o governo de Salvador Allende, a escola católica de elite St. Patrick, conduzida pelo idealista padre McEnroe (Ernesto Malbrán), introduz alunos das classes humildes, moradores de uma favela próxima, no intuito de ensinar um pouco de empatia aos estudantes e promover alguma justiça social. Um destes novos alunos é o menino Pedro Machuca (Ariel Mateluna), de onze anos, que acaba por fazer amizade com um garoto que sofre bullying, Gonzalo Infante (Matias Quer). Gonzalo e Machuca passam a ter uma convivência extramuros da escola, oportunidade em que Gonzalo conhecerá a realidade do menino humilde e sua vizinha Silvana (Manuella Martelli), uma atrevida e politizada jovem.





Ai, esse filme... Eu o assisti pela primeira vez no cinema, no ano de seu lançamento. Na época, fiquei muito impactada e achei que não iria querer repetir a experiência. Mas, teimosa que sou, eis que resolvo revê-lo - o impacto inicial evoluiu para um sentimento de horror e dor infinitos que, em determinada cena, explodiram em lágrimas ferozes. A obra é simplesmente estupenda, um tratado sobre história, política, sociologia e ética e deveria ser obrigatória nos currículos escolares. O filme contém tantos pormenores extremamente significativos que, certamente, não darei conta em um escrito tão curto e despretensioso, mas tentarei abarcar o máximo que eu conseguir de informação que não seja spoiler. A obra discorre sobre a história chilena às vésperas do golpe de estado que destitui o presidente Salvador Allende, assumindo, em seu lugar, Augusto Pinochet, que se mostraria, rapidamente, um facínora de carteirinha. Na narrativa, acompanhamos a polarização da sociedade chilena: de um lado, a elite abastada e corrupta, temerosa de perder seus privilégios seculares; de outro, uma massa de gente miserável, vivendo à margem da sociedade, mergulhada na pobreza e na completa falta de perspectiva, ávida pela justiça social anunciada pelo presidente eleito e disposta a lutar por isso. O personagem Gonzalo, pertencente ao primeiro grupo, passa a ter algum contato com essa realidade tão penosa na qual o novo colega Machuca encontrava-se inserido, mas, apesar do afeto pelos novos amigos, talvez isso não se mostre suficiente para colocar por terra velhos conceitos e preconceitos arraigados no menino rico. Assim, o filme também adentra no terreno da empatia, da lealdade, da conscientização, dos afetos, da perda da inocência e da coragem (ou falta dela). Algumas questões do filme valem a pena ser pontuadas: a mãe de Gonzalo é a imagem da hipocrisia e do classismo - ainda que arrote moralismos, mantém um relacionamento extraconjugal com um homem rico e poderoso, traindo o marido, um indivíduo com ideias mais arejadas e favorável às mudanças propostas pelo governo de esquerda de Allende, e ignorando os filhos em função de seu deslumbramento pelas benesses recebidas do amante; os jovens humildes mostram-se mais maduros, responsáveis e conscientes de seu lugar na sociedade quando em comparação com Gonzalo, um garoto ingênuo, infantilizado e totalmente alheio às questões políticas e sociais; o filme mostra a manipulação promovida pelos empresários e comerciantes que, para incitar a revolta da população contra o governo de Allende, passaram a estocar as mercadorias, alegando um falso desabastecimento e criando um mercado negro paralelo só acessível aos endinheirados; quando do golpe de Pinochet, o novo governo não esconde sua intenção de dizimar a população pobre "excedente", fazendo clara distinção entre os humildes e as elites - teria muito mais coisa a pontuar, mas isso aqui ficaria gigante e ninguém leria (rs). A narrativa é linear, em ritmo marcado e crescente. A atmosfera começa leve, esperançosa e vai, gradualmente, tornando-se mais tensa, até se transformar em um mar de indignação para qualquer um que tenha mínima empatia pelos outros. O roteiro é amarradíssimo, todos os detalhes tem significado e não restam arestas a aparar. Tecnicamente o filme também é impecável, ainda que faça uso de uma linguagem bem convencional, sem arroubos autorais. A trilha sonora é ótima, vale cada música nela inserida. No elenco, os trabalhos de Matias Quer e Ariel Mateluna são irretocáveis, ambos estão ótimos, mas a força motriz do filme encontra-se em Manuella Martelli como a jovem Silvana, uma pequena leoa, selvagem, determinada, cheia de ódio e amor, e a atriz interpreta-a com vigor. Algumas cenas merecem destaque: as duas cenas de mobilização popular; a cena do dia do golpe militar no Chile e seus desdobramentos na comunidade em que Machuca e Silvana residem (prepare-se para sentir a maior dor de suas vidas); a cena final do Padre McEnroe. Mas, quero manter na memória a cena da lata de leite condensado, um momento mágico vivido pelos três jovens (Gonzalo, Machuca e Silvana), repleto de poesia e esperança. O filme é maravilhoso, sensível e extremamente doloroso, vale cada segundo de duração. Obrigatório (e está, no momento, na grade da Netflix, aproveitem).

 
 
 

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