Filme do dia (149/2022) - "Medida Provisória", de Lázaro Ramos, 2020 - Em um futuro indefinido, o governo brasileiro acena com a possibilidade de uma reparação histórica pelo passado escravocrata. Inicialmente, a reparação seria financeira, mas, após negar essa possibilidade, o governo aprova uma lei em que todos os negros teriam de voltar, compulsoriamente, para o continente africano. Inicia-se, assim, uma "caçada" àqueles que se negavam a ser sumariamente exilados de seu próprio país.
Baseado na peça "Namíbia, não!", de Aldri Anunciação, o filme tem, antes de tudo, o mérito de tocar na ferida mais medonha da nossa sociedade - o racismo estrutural. Através de um hipotético futuro distópico - onde os negros seriam abertamente objetificados, tratados como coisas, sem direitos e sem livre arbítrio -, a narrativa escancara a forma como os negros são tratados na nossa sociedade racista e desigual. É através do exagero e, por vezes, do deboche, que a narrativa expõe o que, no mundo real, é feito de uma maneira um pouco mais encoberta - mas, ainda assim, é feito, num claro exercício de racismo e dominação pelos brancos. É um filme que vai "conversar" com qualquer pessoa que tenha a mínima noção de justiça e moral, mas que, certamente, vai dialogar muito mais com quem tem o lugar de fala - é um filme eminentemente sobre negros, de negros, para negros, mas que tem o dom de tocar qualquer público. Pelo tema, o filme é impecável e absolutamente necessário. Agora, saindo da temática, a obra tem alguns poréns. O texto original, teatral, por vezes fica perceptível na tela, algo não incomum quando da passagem do teatro para o cinema. Isso não aconteceu muitas vezes, mas, chegou a me incomodar um pouco quando aconteceu. Também admito que me incomodei com certos alívios cômicos - eu, particularmente, preferia que a atmosfera pesada daquela situação de pesadelo não fosse quebrada com algumas falas engraçadas; acredito que, por sua natureza e gravidade, o tema deveria ser tratado de uma maneira sempre severa, sem alívios, sem condescendência, sem tempo para fôlego, tipo tapa na cara mesmo. Por fim, terceiro e último ponto frágil da obra, achei a direção de atores um pouco irregular, pois em diferentes cenas os mesmos atores (em especial, Alfred Enoch, que interpreta o protagonista Antônio), estavam melhores ou piores. Lógico que isso ficou mais evidente em atores menos experientes, mas mesmo uma atriz como Adriana Esteves tiveram momentos mais ou menos convincentes. A narrativa é linear, em ritmo intenso. A atmosfera é pesada, mas era possível adensar mais o "climão" (o que, para mim, seria não apenas possível, mas desejável e necessário). Gostei bastante da "câmera nervosa" de Lázaro Ramos, uma câmera observadora e ágil, que, muitas vezes, acompanhava a tensão dos personagens. Em relação ao elenco, temos Alfred Enoch como o protagonista Antônio, um advogado combativo, numa interpretação um pouco irregular, mas que não chega a estragar a obra; Taís Araújo interpreta Capitu, a esposa de Antônio, uma médica dedicada, que sofre com o racismo diário; a atriz não erra nunca, é fato, e aqui está fabulosa; como o primo de Antônio, André, temos Seu Jorge - é curioso que é através do personagem André que temos os principais alívios cômicos, os tais que eu não gostei, mas não dá para falar um "ai" do trabalho de Seu Jorge, simplesmente perfeito!!!! Como Isabel, temos Adriana Esteves - a atriz sabe, como ninguém, fazer personagens perversos e odiosos, mas aqui ela praticamente se suplanta - ela está muito bem. Renata Sorrah, outra atriz nascida para interpretar vilãs, faz Dona Izildinha. No elenco, ainda, Emicida como Berto e o próprio Aldri Anunciação como Ivan. Algumas cenas merecem destaque: a fuga de Capitu, uma agonia; o "tribunal" no Afrobunker, com a fala de Capitu; a cena final, com a ação catártica dos envolvidos (sem spoiler). O filme é ótimo, necessário, obrigatório... mas acho que gosto mais do Lázaro Ramos como ator do que como diretor. De qualquer forma, recomendo muito.
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