"O Comerciante das Quatro Estações", de Rainer Werner Fassbinder, 1972
- hikafigueiredo
- 28 de out. de 2021
- 3 min de leitura
Filme do dia (316/2021) - "O Comerciante das Quatro Estações", de Rainer Werner Fassbinder, 1972 - Munique, década de 50. O vendedor de frutas ambulante Hans Epp (Hans Hirschmüller) é desprezado por sua família burguesa por suas escolhas profissionais, o que o leva a beber e ter um comportamento violento contra sua esposa Irmgard (Irm Hermann). Com a saúde abalada, Hans precisa rever sua conduta se quiser sobreviver.

Então... complicado esse filme, hein? Ele possibilita algumas leituras, mas eu, como mulher, não consigo me despir de meu olhar feminino e feminista acerca dele. O filme, na minha opinião, tem um posicionamento mega equivocado em relação ao mundo e em relação ao personagem. Okay, eu admito que as pessoas - homens ou mulheres - são influenciadas por seu meio, suas experiências e pelas pessoas que as rodeiam, em especial suas famílias. Daí a relativizar violência contra a mulher, ignorar os privilégios de quem os têm e vitimizar quem de vítima tem pouco, são outros quinhentos. O personagem Hans é retratado como o pobre-diabo, vítima contumaz de todos, posto ser desprezado pela mãe, irmã e grande amor e, de certa maneira, pela sociedade, graças ao trabalho simples que exerce. Até aí, sem problemas. O que pega é que isso parece ser motivo para relativizar sua violência contra a esposa Irmgard e o desprezo pela pequena filha Renate - e, sorry, não dá para passar pano para violência doméstica, qualquer que sejam as circunstâncias. O filme inteiro é pautado pela vitimização de um personagem que está inserido num contexto de privilégio. Hans é homem, branco, cis e vindo de uma família burguesa, ou seja, está no topo de qualquer cadeia de privilégios. Qualquer sofrimento que ele passe não justifica sua misoginia e violência. Aliás, o filme é todo misógino: todas as personagens femininas - com exceção da irmã Anna, alçada quase à santa - são, de uma forma ou de outra, cruéis, desleais, superficiais ou desprezíveis, enquanto que Hans é o homem sofredor subjugado e sem voz. Aaaaaaaah, faça-me o favor!!! Num mundo machista e desigual, o pobrezinho Hans ser assim massacrado, coitadinho (contém ironia)!!!! Engraçado que, embora tenha percebido essa mensagem equivocada da obra, desde o início, quanto mais os minutos passam, mais errada eu a vejo. O filme simplesmente É errado - não na sua forma, já que muito bem dirigido por Fassbinder - mas pelo seu conteúdo. "Ah, mas tem que lembrar que o filme é de uma outra época" - nananinana, a luta feminista já era plena na década de 70, já dava para ter um olhar minimamente mais empático para com a causa feminina e menos misógino. Nossa... realmente o filme me incomodou. A narrativa é não linear e temos vários flashbacks ao longo da linha mais geral. O ritmo é marcado, sem a tradicional lentidão de filmes europeus. A atmosfera é de desalento e descrença - a autopiedade do personagem é de revirar o estômago, principalmente porque é a posição assumida pelo filme no geral. O roteiro - equivocado ou não - é bem desenvolvido e o espectador que o veja sem um olhar crítico vai comprar toda a vitimização do personagem Hans. Achei o desfecho - tachado de frio e "moralmente desagradável" pela única crítica que li sobre o filme - sensacional (pelo visto, o autor da crítica - claro, homem - esperava uma posição comiserada e sofredora da parte da personagem Irmgard... porque mulher pode sofrer, né, homem que é de cristal... ah, poupe-me!!!! ). O filme traz uma fotografia bem típica da década de 70 - com cores pouco saturadas e uma impressão de "lavada" e aquelas aproximações rápidas que eu sempre detestei. A direção de arte de época (década de 50) está okay. As interpretações são o ponto alto do filme. Independente de concordar ou não com o posicionamento do olhar, admito que as interpretações estão muito, muito boas. Hans Hirschmüller está convincente como o machinho de ego frágil, incapaz de lidar com as críticas, que desce a porrada na esposa, mas sofre por isso (aaaaaaargh!!!!); a personagem Irmgard é propositalmente mostrada como uma mulher desleal e sem atrativos, quase um picolé de chuchu (na tentativa, absurda, de justificar que seja saco de pancada do marido), e a atriz Irm Hermann está perfeita; e a musa e eterna Hanna Schygulla está maravilhosamente desprezível como a irmã Anna, que relativiza o comportamento do irmão Hans, jogando tudo na conta da família, em especial da mãe - sabe aquela mulher machista que faz vista grossa e passa pano para as condutas dos homens violentos? Então, esse tipo. Aqui preciso separar as coisas. Como cinema puro e simples, o filme é ótimo: super bem desenvolvido, sólido e magistralmente bem dirigido; como mensagem, como conteúdo, o filme é machista, misógino e cem por cento equivocado. Adoraria que outras pessoas, principalmente mulheres, comentassem a obra, por isso recomendo uma visita a ela. Vejam e venham me contar o que acharam.
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