Filme do dia (148/2022) - "O Garoto Selvagem", de François Truffaut, 1970 - França, século 1798. Em uma floresta do interior do país, na região de Aveyron, um menino incapaz de falar ou andar ereto é encontrado em um estado selvagem. Ele é resgatado e um médico assume a tarefa de estudá-lo e ensiná-lo a viver na sociedade.
Baseado em uma ocorrência real, o filme vai tratar da questão da socialização do jovem personagem inadequado e fora de padrão. O menino, de aproximadamente onze anos, encontrado em estado selvagem, dá mostras de jamais ter tido contato com a sociedade ou outros humanos. Incapaz de andar ereto e de falar, o menino, nomeado de Victor, logo é colocado como objeto de estudo e passa a ser acompanhado de perto pelo médico Dr. Jean Itard, que assume a tarefa de socializá-lo, adequando-o a um comportamento civilizado e socialmente aceito. De certa forma, o filme trava um diálogo com uma das principais obras de Truffaut - "Os Incompreendidos" (1959), onde outro jovem socialmente inadequado - Antoine Duonel - tem de lidar com o mundo adulto e a sociedade. Claro que, em Victor, a inadequação é levada ao extremo, mas, de qualquer forma, não deixa de ser um tema conexo com a tentativa de "enquadrar" o protagonista Antoine Doinel nos padrões aceitos. A narrativa é linear, em ritmo lento, e assume ares de documentário ao acompanhar, passo a passo, a evolução de Victor pelo árduo trabalho do Dr. Itard, cuja narração em off expõe os objetivos e conclusões do médico. O formato da narrativa é bastante semelhante a de outro filme sobre socialização: "O Milagre de Anne Sullivan" (1962); no entanto, enquanto em "O Garoto Selvagem" sentimos certo distanciamento daquele experiência pelo "olhar" frio e analítico do médico, em "O Milagre de Anne Sullivan" somos lançados para o meio do trabalho da professora Anne com a jovem "selvagem" Helen Keller, muito provavelmente pelas interpretações viscerais das atrizes Anne Bancroft e Patty Duke, que lhes rendeu os Oscares (1963) de Melhor Atriz e Melhor Atriz Coadjuvante, respectivamente. Voltando ao "O Garoto Selvagem", temos uma fotografia P&B contrastada, que privilegia planos médios e, ainda mais, planos próximos, que acompanham o trabalho intenso do médico - são exercícios e mais exercícios que se sucedem, sempre com vistas à socialização e educação de Victor. Ainda que a maioria dos planos sejam convencionais e estáticos, aqui e ali temos alguns enquadramentos bem criativos, lembrando-nos de que se trata do genial Truffaut na direção (fan detected! rs). A trilha musical de cordas de Antoine Duhamel nos remete a séculos passados, bastante adequada à obra. No elenco, temos o próprio François Truffaut no papel de Dr. Itard e o diretor imprime uma forte "frieza" ao personagem - mesmo quando externa algum envolvimento afetivo com seu pupilo, o médico jamais abandona sua "roupagem" de pesquisador, mantendo Victor no papel de objeto de pesquisa. Como Victor o ator mirim Jean-Pierre Cargol - o jovem está bem no papel, mas destacaria, principalmente, a cena final do menino, cujo olhar de mágoa parece engolir o médico, a câmera e o espectador. A personagem Madame Guerin, interpretada por Françoise Seigner, faz o contraponto afetivo ao distante Dr. Itard e, para mim, foi um elemento de alívio à angústia que senti em relação ao pobre Victor. O filme é interessante, mas me senti um pouco incomodada com o distanciamento assumido pela obra (obviamente foi uma reação bastante pessoal às opções do diretor). Mas, ainda assim, é "um Truffaut" e isso nunca é pouca coisa. Recomendo.
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