Filme do dia (193/2017) - "Onde Fica a Casa do Meu Amigo?", de Abbas Kiarostami, 1987 - Ahmad (Babek Ahmed Poor) é um menino de oito anos que, ao chegar da escola, percebe que, sem querer, levou consigo o caderno de seu amigo. Ocorre que o tal amigo havia sido advertido pelo professor de que se não fizesse novamente os deveres no caderno, seria expulso da escola. Decidido a devolver o caderno para não prejudicar o colega, Ahmad propõe-se a fazer uma longa jornada à casa do amigo. Mas ele não sabe o local exato da residência do garoto...
Nesse filme temos, mais uma vez, em se tratando de Kiarostami, poesia em forma de cinema. A aparente simplicidade da história e da narrativa escondem, no entanto, uma riqueza rara em matéria de significados e na arte de fazer cinema. Aparente, também, é a forma aleatória como os planos são escolhidos e colocados - na verdade, nada nos filmes do diretor é aleatório, tudo tem uma justificativa e um objetivo. Claro que, aqui também, há uma gama grande de possibilidade de leituras pessoas pelo espectador, característica do diretor, mas a condução de Kiarostami vai iluminando o caminho do público e alguns entendimentos são evidentes. A ida de Ahmed à casa do amigo é, evidentemente, uma jornada de conhecimento e transformação, onde o jovem depara-se com um mundo diferente do seu e que não o compreende. Para mim, o que mais saltou aos olhos foi a percepção da ausência de comunicação entre o mundo adulto e o da criança - Ahmed, com frequência, não é ouvido, ele precisa repetir várias vezes sua fala e jamais recebe respostas, pois os adultos - seja a mãe, o avô, o professor ou os estranhos - estão excessivamente enclausurados em si próprios para ouvir e dar voz à criança. A exceção é o velho marceneiro, o único que, sabiamente, consegue se comunicar com o menino - e, justamente por isso, é o único que lhe cativa, verdadeiramente, o respeito (a ponto do menino se esforçar para não decepcionar o idoso). Outro ponto que me chamou a atenção foi a comparação do mundo adulto com o infantil. Ahmed é a imagem da hombridade, da responsabilidade e da virtude, ele prefere se prejudicar a prejudicar o amigo, ele tem consciência severa do que é correto e do que deve fazer (detalhe... ele sabe a direção moral, apenas não sabe a direção física a tomar). Ao contrário, os adultos são a imagem da incorreção, parecem perdidos em seus objetivos e tateiam, a esmo, o caminho a seguir, vide a mãe de Ahmed que, de uma maneira conflituosa exige que o menino faça a lição, mas, o tempo todo, interrompe os deveres da criança para que ele ajude nas tarefas da casa, ou a fala do avô cuja "fórmula" para criar um adulto correto passa pela violência, humilhação e autoritarismo. Na minha leitura, o mundo adulto é amoral e corrompido, cego e egoísta. Novamente a exceção é o velho marceneiro, cuja empatia abre-se ao universo infantil e a ele se une para trilhar o caminho moral e físico à casa do amigo. Formalmente, o filme aparenta uma simplicidade que não tem - há, aqui, um jogo interessante entre o que se mostra e o que não se mostra e vários são os planos em que algo ou alguém permanece oculto (a cena do homem com as palhas, o menino escondido atrás da porta, a mulher do lençol fora de quadro, as sombras ao cair da noite). Além disso, o lirismo intrínseco à obra aparece, por vezes, em detalhes (a flor no caderno), por vezes, em uma cena inteira (o que é a cena da mãe de Ahmed tirando os lençóis na ventania? pode haver cena mais poética?). Este filme me remeteu muito a outro filme iraniano ("O Balão Branco", de Jafar Panahi), cujo roteiro também é de Kiarostami e que, da mesma maneira, lida com a criança numa jornada ao mundo adulto e precisando resolver um problema (outra obra maravilhosa!!!!!). O filme é uma lição de cinema e mostra como é possível tirar poesia de uma premissa simples, corriqueira. Mais uma vez, recomendo com louvor para quem quer "um algo mais" e não apenas fórmulas quadradinhas e leitura fácil. Obra de arte.
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