Filme do dia (31/2022) - "Queen & Slim", de Melina Matsoukas, 2019 - Na noite de seu primeiro encontro, Slim (Daniel Kaluuya) e Queen (Jodie Turner-Smith), homem e mulher negros, são parados em uma blitz policial. Quando o policial intenta injustamente contra o casal, Slim acaba por matá-lo em legítima defesa. Inicia-se, assim, uma interminável perseguição à dupla.
Forte e provocador, este road movie não deixa dúvidas quanto ao seu objetivo - tentar transmitir um pouco do que é ser negro em uma sociedade racista e violenta. Discorrendo sobre o racismo e, ainda mais, sobre o amor e o ódio resultantes das relações humanas em uma realidade extremamente preconceituosa, a obra acompanha o desabrochar de uma relação baseada em lealdade e entrega, numa rara sinergia, surgida justamente das adversidades comuns e do reconhecimento de si próprio no outro. Desconfio que este seja um filme que toque infinitamente mais quem vivencia, no dia a dia, o racismo estrutural, pois, por mais que um branco veja a obra com empatia e ânsia de compreender aquela realidade, só sendo negro para saber, nos detalhes, seus significados. A narrativa começa com um "date" ruim - à primeira vista, Queen e Slim não tem nada em comum, são como água e óleo e logo surge verdadeira antipatia entre eles. Após o nefasto evento da abordagem policial, no entanto, o casal compreende que há algo muito maior que os liga - sua negritude, que faz com que ambos sejam sobreviventes num mundo profundamente injusto, cruel, violento e, claro, racista no talo. A partir de então, eles conseguem entender que há, no outro, alguém que compreende suas dores e está disponível para um verdadeiro acolhimento. Mas, claro, não temos só amor no filme - ao contrário, temos muito ódio, na forma de racismo e incapacidade de diálogo e entendimento daquilo que lhe é diferente. Também temos pequenas mostras de empatia, confiança e apoio e, ao contrário, traição, vindos, às vezes, das pessoas mais improváveis. A narrativa é linear, em ritmo que alterna morosidade e dinamismo. A atmosfera é de urgência, injustiça e indignação - o absurdo da situação salta aos olhos e, ao menos em mim, gerou um profundo sentimento de angústia. Se o conteúdo é uma verdadeira pérola, formalmente o filme não fica muito atrás. Com uma ótima fotografia, dinâmica, apoiada em riqueza de planos e posições de câmera criativas e com uma trilha sonora repleta de blues e soul, a obra tem sequências que são de verdadeiro deleite para o espectador, como a cena da boate, transbordando sensualidade, ou a alternância entre as cenas de amor do casal e as da manifestação onde o personagem Junior se encontra. Virtude ainda maior está na escolha do elenco, quase exclusivamente negro, numa Hollywood que ainda resiste a abrir espaço para outros perfis que não do branco. No papel de Slim, um ótimo Daniel Kaluuya (eu já adoro o ator, aqui ele está ainda mais adorável), numa interpretação sensível e contida; como Queen, Jodie Turner-Smith - a atriz traz bons momentos, principalmente quando a personagem Queen se despe de sua casca e se abre com Slim, mas a achei, no começo, um pouco exagerada, over mesmo. No elenco, destaco a participação de Chloë Sevigny e um irreconhecível Flea (sim, o baixista do RHCP) como casal Shepherd , uma maravilhosa Indya Moore como Goodness (deusa) - que mulher maravilhosa, hein, dá para duvidar de qualquer heterossexualidade - e Jahi Di'Allo Winston como Junior, um personagem bastante marcante. O filme é uma porrada, deixa um gosto bem amargo, faz a gente sofrer e, se você for branco e tiver um mínimo de vergonha na cara, sentir-se extremamente responsável por parte daquela realidade ferrada que os negros vivenciam no seu cotidiano (mesmo que você seja super pela causa negra, alguém lá atrás da sua família teve alguma responsabilidade por essa m... toda e você é fruto disto, não se esqueça). Eu gostei bastante e fiquei bem tocada. Acho que merecia maior reconhecimento.
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