Filme do dia (454/2020) - "Um Copo de Cólera", de Aluizio Abranches, 1999 - Em uma pequena chácara, nos arredores de São Paulo, uma jornalista (Júlia Lemmertz) encontra seu recluso amante (Alexandre Borges). Após uma tórrida noite de amor, no entanto, um incidente banal leva os dois amantes a uma encolerizada discussão.
O filme, baseado na novela homônima de Raduan Nassar, concentra-se em um pequeno fragmento do cotidiano de um casal de amantes. Em menos de vinte e quatro horas, o fervor sexual do casal torna-se uma erupção de palavras, um transbordamento de violentos impropérios e acusações, sendo que nenhum dos amantes está disposto ao armistício e empenham-se em derrubar o oponente usando todas as suas armas para tanto. Apesar de focar em um detalhe da vida do casal, o filme chega a ser emocionante, graças ao texto ágil e ferino de Raduan Nassar. Okay, a mistura de erudição com termos coloquiais talvez fique melhor na forma escrita, mas mesmo nas falas dos atores envolvidos, o texto é extraordinário e a rapidez com que é lançado pelos personagens mal dá tempo para o espectador compreendê-lo em sua totalidade, restando aquela vontade de ver/ouvir novamente para absorver todo o seu significado. A história me remeteu às obras de Nelson Rodrigues, pois traz o mesmo tipo de provocação, de escancaramento das relações amorosas. Há, ainda, no texto, certo conteúdo político, pois boa parte das ofensas trocadas entre os protagonistas atinge suas posturas perante a sociedade, suas concepções de mundo e suas orientações políticas, desde o feminismo assumido pela jornalista quanto um eventual anarquismo por parte do amante. Além de no texto magnífico, a obra alicerça-se na interpretação visceral e despudorada de Júlia Lemmertz e Alexandre Borges. A química do casal foi garantida pelo fato de, na época, serem casados na vida real, o que trouxe, à tela, toda a intimidade existente entre os dois. Tanto nas cenas de amor, escandalosamente arrebatadoras, quanto nas de embate, onde a cólera dos personagens parece emergir de cada poro e sobram ofensas muito bem costuradas de um para o outro, Alexandre Borges e Júlia Lemmertz mostram-se muito à vontade e seguros em seus personagens. Adorei a forma como a personagem feminina rebate o ódio incontido e irracional do amante com deboche e ironia. No elenco, ainda, Ruth de Souza, Linneu Dias e Marieta Severo em pontinhas ínfimas. A obra é excelente - intensa demais, passional e violenta - mas há que se gostar de escritos literários, pois a complexidade do texto exige algum esforço de compreensão e absorção. Apesar de gostar muito do filme, ainda prefiro a transposição para o cinema de "Lavoura Arcaica" (2001), também baseada na obra do escritor e possivelmente meu filme predileto em toda a filmografia nacional. De qualquer maneira, recomendo ambos os filmes.
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