Filme do dia (99/2020) - "Você Não estava Aqui", de Ken Loach, 2019 - Ricky (Kris Hitchen) está desempregado e luta para manter sua família com a ajuda de sua esposa Abbie (Debbie Honeywood). Ele vende o carro da família para comprar uma van e trabalhar como autônomo com entregas. Mas as promessas de sucesso terão um altíssimo custo.
Que porrada!!!!! O filme não poupa palavras e tampouco aposta em metáforas para discorrer sobre um fenômeno muito atual: a chamada "uberização" da economia, aquele trabalho autônomo com condições que se assemelham às dos trabalhadores assalariados do início do século XIX mas que vem "maquiado" sob a égide de "empreendedorismo" - em outras palavras, trabalhe até o esgotamento, sem nenhum direito, para ganhar uma merreca no final do mês, arque com todos os tipos de prejuízo e faça a fortuna do seu contratante (exatamente como acontece com empresas como Uber, Rappi, Ifood, Loggi, etc, etc, etc). Até o discurso usado por essas empresas é diretamente exposto: "trabalhe por conta própria", "seja seu próprio patrão", "faça seu horário", "não tenha vínculo empregatício e seja livre" - lindas palavras que não revelam a verdadeira natureza deste tipo de atividade: 14 horas de trabalho diário, seis dias por semana, privação de sono, esfacelamento da vida familiar, abandono de qualquer tipo de vida pessoal, incluindo lazer e desenvolvimento profissional, degradação da saúde física e psicológica e, enfim, o colapso. A obra é crua e direta, não há o que interpretar ou divagar a respeito, é um soco no estômago sem amortização, um choque de realidade. O filme é extremamente triste e angustiante, pois retrata a vida de milhões de "novos escravos" que "compram" a ideia de serem "empreendedores" sem entender que não existe capitalista sem capital, e que, na verdade, eles são apenas trabalhadores sem direitos. O ritmo da narrativa é gradual, uma bola de neve descendo a ribanceira, e o desfecho é o tiro de misericórdia (sem spoilers). A direção é perfeita, fazendo jus ao ótimo roteiro. A fotografia é correta, sem arroubos artísticos e sem qualquer glamourização daquela realidade, é uma fotografia seca como a história. As interpretações de todos são excepcionais e deixam evidente o desespero daqueles personagens: Kris Hitchen está ótimo o filme todo, mas se supera na cena final; Debbie Honeywood interpreta uma mulher esgotada por assumir mil papeis para compensar seu marido ausente por ser "escravo" de sua atividade profissional; Rhys Stone está fantástico como o filho problemático que busca atenção e até mesmo a ruivinha Katie Proctor como a filha sensível está maravilhosa. Seria ótimo se as pessoas que vivem essa realidade "acordassem" de seu sonho de riqueza e vissem a obra como seu espelho e quem sabe, assim, buscassem a saída para essa escravidão. Eu amei o filme, apesar do sofrimento nele embutido. Imprescindível para quem quer entender a nossa realidade atual.
Comments