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"Você Nunca Esteve Realmente Aqui", Lynne Ramsey, 2017

hikafigueiredo

Filme do dia (43/2022) - "Você Nunca Esteve Realmente Aqui", Lynne Ramsey, 2017 - O ex-soldado Joe (Joaquin Phoenix), que sofre traumas de infância e de guerra, trabalha reavendo meninas sequestradas das mãos de seus algozes. Certo dia, ele é contratado para recuperar a filha de um senador, sequestrada e mandada para um bordel de luxo. A missão fará com que Joe adentre numa perigosa e abominável conspiração.





Lendo a sinopse, parece que estamos diante de um eletrizante filme de ação, certo? Ledo engano. A obra aposta menos na dinâmica do gênero ação e muito mais no intimismo de um drama, focando na figura torturada e conflituosa do monossilábico Joe, que tenta expurgar seus fantasmas internos por meio da vingança e da violência. Vítima contumaz de um pai violento e traumatizado com sua experiência na guerra, Joe busca amenizar suas dores emocionais - aqui representadas por pensamentos intrusivos recorrentes - através da brutalidade com que trata os autores dos sequestros de meninas e adolescentes, os quais, ao invés de serem levados à justiça, são fria e impiedosamente executados - com requintes de crueldade - pelo ex-soldado. Ainda que a obra não apele para a violência gráfica, explícita, inegável que existe uma verdadeira fetichização desta violência, que é representada pela maneira como Joe limpa, cuidadosamente, seus "instrumentos de trabalho" ou, ainda, como escolhe, carinhosamente, as ferramentas que utilizará na próxima tarefa. Muito embora o filme trate de pedofilia, escravidão sexual, violência doméstica e maus tratos à criança, o foco se fixa no resultado destas coisas mais do que nelas próprias - esse perverso caldo de horrores seria a causa e origem de um tipo perturbado como Joe, o qual traz, em si, um evidente conflito interno que se revela na oposição entre sua imagem silenciosa, discreta, quase sensível, e a sua violência incontida quando em momentos de tensão. O filme traça um diálogo bem interessante com outra obra cinematográfica, o memorável "Taxi Driver" (1976), cujo personagem também assume uma causa "salvadora" nos mesmos moldes que Joe, mas com uma significação interna completamente diferente (não vou entrar em detalhes porque daria até tese de mestrado, mas basta ver como Travis Brickle e Joe são diametralmente opostos em suas personalidades). A narrativa alterna a cronologia dos fatos com cenas das reminiscências de Joe, mostradas como pensamentos fantasmas constantes do personagem. O ritmo é lento, com algumas cenas mais ágeis, mas jamais perdendo de vista o caráter intimista da obra. A atmosfera é, desde o primeiro minuto, pesada, transtornada, sofrida - sentimos, em nós mesmos, a dor do personagem Joe: é um filme bastante sensorial, no sentido de transmitir muito mais informações emocionais do que racionais. Visualmente, a obra traz uma sofisticação de imagens rara - os planos são muito bem trabalhados, em ângulos criativos; a diretora opta por mostrar sempre bem pouco, como em uma cena em que Joe executa muitas pessoas, mas quase só percebemos o movimento de seu braço aqui, a ponta de um pé caído de uma vítima ali, tudo é muito econômico e "clean". Essa cena, inclusive, aproveita as imagens de um circuito interno de câmeras, promovendo, assim, certo distanciamento do espectador da ação em si. A trilha sonora - baseada num sintetizador repetitivo - foi claramente pensada para causar desconforto (se causou em mim, que sou surda para cinema, imagine para quem foca na sonoridade do filme). O elenco traz, em primeiríssimo plano, Joaquin Phoenix como o desequilibrado Joe - o ator consegue mesclar características tão díspares no seu personagem! Joe é, a um só tempo, doce e selvagem, vulnerável e sanguinário, certo e errado - e Phoenix não perde a mão em uma única cena!!!! Diria mesmo que o filme é Phoenix na pele de Joe, e ponto! Judith Anna Roberts interpreta a mãe idosa de Joe e Ekaterina Samsonov interpreta a frágil Nina, ambas muito bem em seus papéis. O filme foi agraciado com o prêmio de Roteiro e Interpretação Masculina em Cannes (2017) - premiações justíssimas, principalmente pela atuação sensível e visceral de Joaquin Phoenix. O filme é muito bom, mas exige, necessariamente, que o espectador assuma o intimismo da obra, que ele se incumba de ver e sentir tudo pelos "olhos" de Joe. O filme só fará sentido se o público tomar para si as dores do personagem, caso contrário, a obra se tornará praticamente oca, sem alma. Recomendo, mas só para quem conseguir colocar-se sensorialmente na narrativa.

 
 
 

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