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hikafigueiredo

"O Homem ao Lado", de Mariano Cohn e Gastón Duprat, 2009

Filme do dia (145/2022) - "O Homem ao Lado", de Mariano Cohn e Gastón Duprat, 2009 - Leonardo (Raphael Spregelburd) é um renomado e premiado designer que habita a "Casa Curutchet", em La Plata, Argetina, única construção do arquiteto Le Corbusier nas Américas. Seu sossego cai por terra quando seu vizinho Victor (Daniel Aráoz) resolve abrir uma janela em sua própria residência com vistas à casa de Leonardo, levando os vizinhos a um impasse.





A obra é uma comédia dramática com muito mais camadas do que uma primeira vista sugeriria. O filme é, antes de tudo, uma crítica, até mesmo uma "autocrítica", a todo um segmento social - a classe média intelectualizada que, embora rica em cultura e conhecimento, encontra-se esvaziada de preceitos éticos e encastelada em si mesma e na sua arrogância. Digo "autocrítica" porque o filme, de certo modo, "assume" um lado - isso é perceptível não apenas por retratar sempre o ponto de vista de Leonardo, mas, também, pelo fato da própria câmera estar quase sempre no interior da "Casa Curutchet", mesmo quando com vistas à casa ao lado. Além disso, trabalha-se com a probabilidade muito maior do espectador fazer parte desta elite intelectual do que de uma classe mais popular - assim, a crítica ácida volta-se não apenas aos personagens, mas também ao próprio público (movimento arriscado dos diretores, ainda que, desconfio, não tenha sido "captado" por boa parte dos espectadores). A história tem início quando Victor, o vizinho simplório e de modos rústicos, resolve abrir uma janela em sua casa voltada para a "Casa Curutchet", onde o protagonista Leonardo reside. O designer incomoda-se com a situação e exige que Victor feche a janela, mas Victor argumenta que ele só quer um pouco de sol no seu cômodo, de forma que se chega a um impasse. Ao longo das tratativas para resolver a questão, passamos a observar um pouco mais os dois contendentes. De um lado, temos Leonardo. À primeira vista, o designer é um homem refinado, culto, inteligente, mas, um pouco mais de atenção revelará quem realmente ele é: um homem preconceituoso, arrogante, desleal, covarde, falso e com muito pouco escrúpulos. De outro lado, temos Victor, um grosseirão sem muitos modos, mas que, ao longo da narrativa, mostra-se muito mais verdadeiro, genuíno e leal que o vizinho empertigado. A construção narrativa é interessante justamente por assumir o lado "menos bonito" como já dito. Também é interessante a forma como a alteridade é trabalhada - como "o outro" é visto e sentido e quão aberto (ou não) estamos para entender e aceitar aquilo que nos é diferente. É inegável que o rude Victor está muito mais disposto a aceitar as diferenças que Leonardo que, em sua arrogância, vê-se como o arauto da razão e se mostra bem pouco disponível às negociações. Pior ainda que Leonardo é sua esposa Ana, ainda mais fechada em seu mundo de aparências que o marido. Podemos dizer, por fim, que a obra discorre muito sobre a hipocrisia - o casal chique e refinado não consegue esconder, por um único instante, a hipocrisia que vivenciam, seja ao criticarem duramente os próprios amigos, seja ao exporem a fragilidade de sua própria relação conjugal. A narrativa é linear em um ritmo moderado mas regular. A atmosfera é de incômodo sutil - incômodo pelo vizinho grosseiro, sem dúvida, mas muito mais pela imagem do casal que, pouco a pouco, vai se tornando abjeta. A própria comicidade que o filme traz é incômoda, e gera um riso tenso do espectador (possivelmente por perceber, intuitivamente, que parte da crítica ali existente volta-se, também, para si mesmo). Uma coisa que me chamou muito a atenção foi a forma como os personagens são apresentados: de um lado o casal requintado, que, reiteradamente, não é mostrado claramente, pois vistos de perfil, ou de costas ou, ainda, com seus rostos parcial ou totalmente cobertos, a sugerir sua falsidade (eles "escondem" quem são realmente); do outro, o vizinho Victor, sempre visto de frente e por inteiro, a sugerir que ele é verdadeiro, genuíno, e não se esconde por detrás de modelos sociais. Algo que merece um destaque: os dois personagens masculinos "se aproximam" em um único espectro - ambos são profundamente machistas, o que ficará evidente nas cenas da aluna de Leonardo e da namorada de Victor. Outro ponto que merece destaque é a questão da filha de Leonardo, Lola, que despreza visivelmente o pai, mas rapidamente demonstra simpatia pelo vizinho toscão mas sorridente e gentil. A fotografia da obra é muito clean, muito clara, e a arte colabora com essa clareza ao trabalhar com cores sóbrias. Temos enquadramentos extremamente originais, criativos e ousados, como os muito planos onde os rostos de Leonardo e Ana aparecem cobertos ou recortados, ou, em cenas onde a arquitetura de Le Corbusier é evidentemente destacada. As interpretações também são ótimas e muito adequadas: Raphael Spregelburd consegue passar as piores nuances de Leonardo ao público, de modo que muito rapidamente a gente desenvolve antipatia, aversão até, ao protagonista; Daniel Aráoz também está ótimo como Victor, que equilibra bem os péssimos modos de seu personagem com seu claro carisma. No elenco, ainda, Eugenia Alonso como Ana, Inês Budassi como Lola e Loren Acuña como a doméstica Elba. "O Homem ao Lado" é uma obra de detalhes, muito ácida, muito crítica e verdadeira, que vale a pena ser vista. Recomendo.

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