Filme do dia (23/2023) – “O Milagre”, de Sebastián Lelio, 2022 – Irlanda, 1862. A enfermeira inglesa Elizabeth Wright (Florence Pugh) viaja para um pequeno e remoto vilarejo irlandês para monitorar o jejum considerado milagroso de uma jovem garota de onze anos, Anna (Kila Lord Cassidy).
Mais rica em conteúdos do que se poderia supor por sua sinopse, o filme abre espaço para discussões como o poder controlador das religiões, o machismo estrutural, o tripé sociedade-família-religião como origem da subjugação e culpabilização da mulher, a falsa moral cristã, as relações familiares e de afeto, o medo imposto pela religião cristã como forma de controlar seus fiéis, o fanatismo, a culpa, a vulnerabilidade das crianças e adolescentes, dentre outros. Alguns temas tratados são bastante sensíveis, inclusive a obra aborda tabus e questões morais perturbadores, então é bom o espectador estar preparado para tal, ainda que tudo seja abordado de uma maneira relativamente suave (impossível ir além sem cair em spoilers imperdoáveis). O embate razão versus obscurantismo permeia toda a obra e escancara a forma “torta” como os religiosos conduzem as suas vidas e a de seus dependentes. Confesso que detestei a entrada e o final do filme que mostram o estúdio onde as filmagens se passam antes de entrar efetivamente na narrativa, bem como a quebra da quarta parede – isso fez com que eu demorasse muito mais para me envolver com a história. A narrativa é linear, em ritmo vagaroso. A atmosfera é angustiante e claustrofóbica e só piora quanto mais nos aproximamos do desfecho. Formalmente, embora muito convencional, a obra é impecável. A fotografia colorida, muitíssimo contrastada, mas pouco brilhante e pouco saturada, aposta em movimentos de câmera suaves e sinuosos e em planos preferencialmente médios. A direção de arte de época é primorosa e privilegia os tons escuros – tudo é muito cinzento, como também o é a existência daquela gente, em especial em uma época de recessão e de disseminação da fome. O elenco, encabeçado pela maravilhosa Florence Pugh, extravasa talento. Florence está fantástica como a atormentada e cética enfermeira inglesa, convicta de que o jejum da pequena Anna é uma farsa – a atriz consegue transmitir sua angústia e indignação em pequenos gestos e mudanças faciais sutis, mas poderosas; como a menina santa, uma surpreendente Kila Lord Cassidy, que, apesar da pouca experiência, cumpre com rigor o papel; Tom Burke interpreta o personagem William, e, apesar de estar bem no papel, vejo o personagem como uma peça um pouco mais frágil na narrativa; no elenco, ainda, Elaine Cassidy, como a mãe de Anna, Niamh Algar como Kitty, Toby Jones como o médico da vila e Ciarán Hinds como o padre local. Comecei a ver o filme por causa de Florence Pugh, pois sou muito fã dela, e depois me dei conta que o diretor era o mesmo do ótimo “Uma Mulher Fantástica” (2017), ganhador do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2018. Admito que fiquei bastante envolvida e tocada pelo filme e achei curioso que jamais havia ouvido falar dele (assisti meio que por acaso, zapeando a Netflix). É um filme bastante bom, eu gostei de recomendo.
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