Filme do dia (208/2021) - "Silêncio", de Masahiro Shinoda, 1971 - Japão, século XVII. Dois padres jesuítas desembarcam em uma pequena ilha japonesa em busca de seu antigo mentor, desaparecido há vinte anos. Eles terão de se manter incógnitos, já que o cristianismo era proibido no país naquele tempo e castigado com a morte.
Primeira adaptação cinematográfica do livro de Shusako Endo (que também participou do roteiro), a obra é um drama histórico que retrata o conflito ocidente-oriente, tendo como foco a religião católica. O mesmo romance foi, mais recentemente (2016), readaptado para o cinema por Martin Scorsese - existindo, no entanto, grandes diferenças entre ambos os filmes. A história discorre sobre a proibição do cristianismo em solo japonês, graças à preocupação dos xoguns quanto à crescente ocidentalização do país e a gradual influência de países europeus naquelas terras. A proibição resultou em uma severa perseguição aos fiéis e aos clérigos , os quais passaram a ser torturados para que abjurassem sua religião - quem, de alguma forma, renegasse os símbolos cristãos era poupado de torturas e mortes terríveis. É neste contexto que os personagens padre Rodrigues e padre Garrpe desembarcam na costa do Japão em busca do padre Ferreira, seu antigo mentor. Aqui surge a primeira grande diferença entre as duas versões cinematográficas do romance: o padre Rodrigues de Shinoda é convicto de sua crença, enquanto o de Scorsese vive uma profunda crise de fé (de minha parte, achei mais consistente a ideia de um padre em crise em meio a todo aquele horror do que um cegamente convicto). A narrativa acompanhará, principalmente, os passos do padre Rodrigues, que será, paulatinamente, exposto às maiores crueldades para que rejeite a fé cristã. A narrativa é linear, em ritmo moderado. Na obra dirigida por Shinoda, temos uma maior preocupação com a atmosfera da narrativa, que surge sombria, pesada, em decorrência de escolhas relacionadas à fotografia - opaca, pouco saturada e numa paleta de cores predominantemente sóbria - e à trilha sonora - que une uma espécie de música de câmara com notas muito dissonantes, criando um profundo estranhamento no espectador. Por outro lado, Scorsese dá muito mais visibilidade às torturas praticadas contra os fiéis - talvez visibilidade até excessiva, tornando a obra um tanto quanto sádica, num voyerismo perverso e exagerado, algo que não acontece no filme de Shinoda, infinitamente mais comedido em mostrar essas cenas de tortura. Gostei de como a obra trabalha a imagem do padre Rodrigues - ele vai se tornando cada vez mais pálido e encurvado, sua aparência torna-se gradualmente mais doentia na medida em que aumenta sua exposição ao sofrimento alheio, com uma óbvia relação com a via crucis de Jesus. O elenco é composto por David Lampson como padre Rodrigues - sua caracterização é melhor do que sua interpretação, que eu achei mais teatral e menos visceral do que deveria; Mako como o conflituoso Kichijiro, o "Judas" da história, que trairá, repetidamente, os cristãos, sejam padres, sejam fiéis - ótima interpretação, ele desperta simultaneamente pena e aversão no espectador, que não consegue decidir se ele é um pobre coitado ou um canalha de carteirinha; e Tetsuro Tamba como o padre Ferreira - eu entendo que a escolha de um ator japonês para o papel de um padre português tenha sido uma metáfora para indicar a sua perda de identidade, sua aculturação e a forma como foi absorvido pela sociedade e cultura japonesas; na realidade, eu espero que tenha sido isso, porque a escolha do ator me pareceu bem esquisita, apesar de sua evidente capacidade interpretativa. Na obra, destaco a angustiante cena da tortura do casal e o diálogo entre os padres Rodrigues e Ferreira. Bom filme, valeu a visita.
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