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  • hikafigueiredo

"O Pântano", de Lucrecia Martel, 2001

Filme do dia (47/2022) - "O Pântano", de Lucrecia Martel, 2001 - Em uma casa de campo afastada, Mecha (Graciela Borges), uma mulher de meia idade, e sua família suportam o calor sufocante do verão argentino. Um acidente doméstico levará Mecha ao hospital, fazendo com que sua prima Tali (Mercedes Morán) vá visitá-la, juntando, assim, as duas famílias.





Vou fazer um mea-culpa: eu não conhecia nada da carreira da cineasta argentina Lucrecia Martel. Decidida a desfazer essa mácula na minha "carteirinha" de cinéfila, resolvi assistir à obra "O Pântano". Resultado: quero devorar os demais filmes da cineasta! A obra "O Pântano" já revela, no título, o assunto sobre o qual discutirá: a estagnação da sociedade argentina e as relações familiares e sociais em franca decomposição naquele país. Fazendo uma dura, mas sutil, crítica à sociedade de seu país, Martel abraça, com carinho, vários e diversificados temas sem priorizar nenhum em detrimento dos demais. Assim, o espectador poderá ter sua atenção voltada para a relação de exploração existente entre a classe média branca, de origem europeia, e a população mais humilde, de origem indígena; para o machismo estrutural que permeia as relações afetivas; para a desestruturação familiar; para o desabrochar da sexualidade na adolescência; para a frustração feminina frente a uma realidade que a oprime; para a violência que entremeia todas as relações sociais - a cineasta abre um grande leque, oferecendo ao público a chance de escolher para qual tema voltará seu olhar. Em comum a todo e qualquer tema, a percepção de estagnação, de imobilidade, de sufocamento. Uma coisa que me chamou muito a atenção é que esta é uma obra extremamente sensorial - mais do que entender racionalmente, o espectador sente a atmosfera de decadência. Para tanto, Martel usa e abusa de subterfúgios para alcançar o público - a ação está acontecendo, mas o olhar do espectador é atraído para a impressão de sujeira que está em tudo: na piscina imunda, no cabelo ensebado de uma personagem, nos copos sujos que se acumulam ao redor da piscina, no personagem que lava sua perna enlameada no chuveiro, deixando o chão coberto de barro, nos cães que andam na terra e depois sobem nas camas. Sem falar diretamente uma palavra sobre isso, a cineasta consegue transmitir a situação de decrepitude familiar e social da Argentina - e faz isso incrivelmente bem! Tenho de alertar que a obra - ótima, maravilhosa! - não é exatamente agradável de se assistir - ao contrário, ela causa desconforto, ela chega a ser perturbadora. por n+1 motivos. E não é só pelas imagens, não. Martel aproveita muitíssimo bem o elemento sonoro para contribuir para essa sensação de desconforto - exemplo brilhante já aparece na cena de abertura, quando um grupo de homens e mulheres de meia idade, embriagados ao extremo, arrastam suas cadeiras de metal pelo cimento em torno da piscina de águas turvas - o som que sai disso é extremamente aflitivo e incômodo e já dá uma ideia do que teremos adiante. Aliás, vale dizer que essa cena inicial é fantástica por qualquer ângulo que se olhe e transmite, com perfeição, a ideia de decadência, utilizando-se do olhar bêbado da personagem Mecha, que é assumido, em alguns momentos, pela câmera. Outra coisa que chama a atenção no filme é que Martel, propositalmente, deixa pouco clara a natureza das relações entre os personagens: demoramos a entender quem é filho de quem, quem mantém relacionamento com quem, etc, justamente para sugerir que as relações são corrompidas, confusas e insidiosas. A narrativa é linear, o que não significa que não seja, por vezes, nebulosa, em ritmo bastante lento, como se caminhássemos nesse pântano. A atmosfera, como já mencionado, transita entre o perturbador e o aflitivo. A fotografia aposta nos tons cinzentos e na absoluta ausência de saturação e contraste - é como se um véu cinzento encobrisse todas as imagens. O som, por diversas vezes, subsiste às imagens, isto é, continua além das imagens correspondentes, como nas cenas das caçadas (não há cena de nenhum animal sendo alvejado, podem assistir sem medo). O elenco é enorme, uma vez que as personagens principais têm famílias numerosas, valendo destacar o trabalho de Graciela Borges como a alcoólatra Mecha, de Mercedes Morán como a atarefada e frustrada Tali, Sofia Bertolotto como Momi, Juan Cruz Bordeu como José e Andrea López como Isabel. A obra é incrível, enfia o dedo na ferida das relações sociais e familiares na Argentina (mas que poderia ser estendida a toda a América Latina) é criativa e sensorial do jeito que eu gosto. Eu adorei e recomendo muito.

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