Filme do dia (131/2024) – “Abril”, de Dea Kulumbegashvili, 2024 – Nina (Ia Sukhitashvili) é uma obstetra que, nas horas vagas, realiza abortos clandestinos nas vilas no entorno de uma pequena cidade da Géorgia. Convicta de que está fazendo seu dever profissional e o melhor para suas pacientes, Nina arrisca-se profissionalmente nessa tarefa. Quando, em um parto normal no único hospital da região, um bebê morre, ela é acusada, pelo pai da criança, de imperícia médica, tendo de passar por uma investigação que coloca em risco sua carreira e seus princípios.

O filme, um tanto árduo de acompanhar, discorre sobre o patriarcado, a condição da mulher, seu direito de escolha sobre seu corpo, os limites éticos e morais da medicina, questões legais que afetam os direitos individuais das mulheres e a angústia de seguir seus princípios quando estes se chocam com as questões morais socialmente impostas e os limites legais estabelecidos. A personagem Nina segue, com convicção, seus princípios – ela percebe que tanto a sociedade, quanto a Justiça, retiram o direito da mulher sobre seu próprio corpo e sobre sua vontade de prosseguir ou não com uma gravidez. Tentando subverter essa realidade, tão injusta com as mulheres, ela vaga por estradas lamacentas, visitando vilas minúsculas e residências afastadas, realizando abortos clandestinos, ainda que isso seja um risco para sua carreira e que isso seja malvisto por homens que querem ter o poder de decisão sobre suas mulheres. Nina é visionária em suas convicções, o que não quer dizer que não existam questões internas – seus monstros interiores – que precisem ser trabalhadas, o que Nina faz com dificuldade, ao sair em busca de algo inespecífico nas suas empreitadas pela região. As reflexões propostas vêm na forma de um filme introspectivo, interpretativo e, por vezes, um pouco hermético. É perceptivelmente um filme que dialoga muito mais com as mulheres do que com os homens – e eu vi isso através do meu companheiro de sessão rs. O filme tem um ritmo desesperadoramente lento; são cenas e mais cenas de câmera fixa, que duram uma eternidade e por vezes registram apenas um pequeno fragmento da ação ou dos personagens – há uma cena de um aborto em que só temos o registro das costas da mulher que está auxiliando no procedimento e que dura, sei lá, uns dez minutos. Não, não é filme para todos os públicos, há que gostar muito de filme intimista, viu. As escolhas de planos e posicionamentos de câmera causam estranheza, pois são recortes pouco naturais e orgânicos. Há, ainda, uma preferência por planos médios e próximos nas cenas internas e planos muito abertos, nas externas. Também há o uso constante de câmeras em primeira pessoa, isto é, como se a câmera fosse o olhar da personagem Nina. A edição de som e todo o registro sonoro do filme merece um destaque especial – constantemente temos informações sonoras que são desacompanhadas das imagens, além de ruídos cuja função é criar uma atmosfera perturbadora, como o som de uma respiração ou o tic-tac sem fim de um relógio. É uma obra de sonoridade riquíssima e sem qualquer (ou quase nenhuma, não sei dizer ao certo) trilha musical – são cenas silenciosas onde tais ruídos incômodos reinam e que são quebradas pelos diálogos entre os personagens. A interpretação da atriz Ia Sukhitashvili também merece destaque por sua contenção e introspecção – a angústia da personagem só nos chega através de uma representação, um tanto quanto discutível, de uma criatura que surge, de tempos e tempos, na tela (e cujo significado eu interpretei como essas dores interiores da personagem). Destaque, por fim, da cena da tempestade – a mais linda tempestade já filmada e que tem uma incrível referência ao momento da personagem. Meu amigo detestou e achou super pretencioso – é, pretencioso é um pouco mesmo, mas eu consegui me conectar com a narrativa e a obra fruiu muito bem para mim. Recomendado apenas para quem gosta de filmes difíceis. Assistido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
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