Filme do dia (103/2021) - "Amistad", de Steven Spielberg, 1997 - Atlântico, 1839. Um grupo de africanos capturados como escravos rebela-se, toma o navio negreiro La Amistad e mata sua tripulação. Apesar do grupo intentar voltar à sua terra natal, o navio acaba chegando a águas norte-americanas e é interceptado pela marinha daquele país, que prende os rebelados. Tem início, então, um julgamento para decidir qual destino se dará àquelas pessoas - devolvê-las à Rainha Isabel da Espanha como propriedade daquele país, condená-las à morte como assassinas da tripulação ou libertá-las e devolvê-las ao continente africano como homens e mulheres livres.
Este é um filme que, não obstante as boas intenções de Spielberg, tem virtudes, mas também tem muitos poréns. A maior virtude, sem dúvida, reside na denúncia das atrocidades cometidas contra os povos africanos de pele negra, capturados em seu continente, espoliados de sua liberdade, escravizados, tratados como coisas, torturados e por vezes friamente assassinados por seu algozes. É evidente que, para se discutir os horrores da escravidão negra, é necessário tocar nesta ferida e expor, entre outras coisas, o tratamento dispensado àquelas pessoas. Mas existe um reverso desta moeda. Mostrar a população negra sendo torturada em detalhes e requintes de crueldade me soa como uma válvula de escape para o branco sádico e sem empatia - se de um lado, algumas pessoas brancas se indignarão com aquelas cenas, outras irão, intimamente, achar justificativa para aquele pesadelo. Posso estar errada - até mesmo porque não vivo, na pele, o racismo estrutural - mas também tenho uma sensação que estas cenas medonhas têm um efeito bastante deletério no psicológico daqueles que se identificam como negros. Sou absolutamente incapaz de dizer se é melhor expor com crueza os horrores vividos pelos escravos ou se, ao contrário, o caminho é mostrar as virtudes e feitos dos povos africanos como meio de construir uma autoestima sólida - eu sei que tais cenas me incomodam demais e eu sofro um monte por assisti-las. Outros poréns: ainda que exista a figura heroica do personagem africano Cinque, é fato que a velha fórmula do "branco salvador" está fortemente presente, de forma que o branco acaba sempre numa posição de proeminência - se eu já acho isso odioso sendo branca, posso imaginar o que sente um negro ao se deparar com isso. Bom... essas são apenas conjecturas acerca de coisas que me incomodaram no filme, tendo absoluta consciência de que não é meu lugar de fala. Mas, sigamos com a obra. O filme acompanha a via sacra dos africanos no tribunal e a luta dos abolicionistas para libertá-los. Sendo filme de Steven Spielberg, já sabem, né: vai ter muito melodrama pela frente (eu chamo de melodrama as cenas de efeito, as manipulações através da música, os excessos das atuações e Spielberg é rei em fazer isso com requinte e certa discrição). A narrativa é majoritariamente linear, com alguns flashbacks pelo caminho e o ritmo começa bem marcado mas, ao final, entra num modo "cruzeiro" que acabou me dando certo sono. A atmosfera é angustiante desde o início e permanece assim até o final. Óbvio que tecnicamente o filme é para lá de impecável - fotografia irretocável, em tons quentes e planos bem tradicionais, montagem eficiente e trilha sonora de John Williams. O elenco é estreladíssimo - Morgan Freeman como Mr. Joadson, Anthony Hopkins como o ex-presidente John Adams, Matthew McConaughey como o advogado Baldwin, Pete Postlethwaite como o promotor Holabird, Stellan Skarsgard como Mr. Tappan e Anna Paquin como a Rainha Isabel da Espanha. Mas o destaque fica para o não tão conhecido Djimon Hounsou como Cinque - gente... que expressão que esse homem tem, por Deus!!!! Ele está fantástico nesse filme!!!! A obra concorreu a um sem fim de prêmios, dentre Oscares e Globos de Ouro, mas o mais importante recebido foi o Critics' Choice Award de Melhor Ator Coadjuvante para Anthony Hopkins _ ele estava muito bem no papel, mas que personagem enfadonho... Eu assisti a essa obra na época do lançamento e lembro de ter gostado bastante. A revisita não foi assim tão animada, acho que o filme envelheceu um pouco, mas, como disse, tem lá suas virtudes. Não é dos meus filmes prediletos do diretor, mas vale a pena assistir, ainda que seja para polemizar.
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