Filme do dia (284/2021) - "Amor Sem Barreiras", de Hal Ashby, 1970 - Elgar Enders (Beau Bridges) é um jovem milionário que adquire um cortiço no Brooklyn nova iorquino na clara intenção de desalojar seus moradores, reformá-lo e fazer dali sua casa, logicamente chique e sofisticada. No entanto, acaba se envolvendo com os moradores, sem conseguir expulsá-los do lugar.
Década de 1970, a contracultura ganhava espaço e a população negra norte-americana, empoderada, orgulhava-se de sua cor e cultura, solidificando suas conquistas no âmbito dos direitos civis e lutando por maior espaço na via política do país. É a época dos Panteras Negras, dos cabelos "black power" e do "black is beautiful". Evidentemente, o racismo continuava imperando entre a elite branca, que ainda via os negro como seus meros serviçais e como aqueles que deveriam se manter longe. É neste panorama que o filme está inserido, tratando a questão racial num tom que vai do drama ao deboche. O protagonista é Elgar, um jovem branco e rico que, muito embora não seja uma má pessoa, é puro produto de seu meio. Ele adquire um imóvel em pedaços, transformado em cortiço, encravado no Brooklyn, bairro negro da cidade, intentando reformá-lo e fazer dali sua mansão. Ocorre que, ali, acaba conhecendo outra realidade, muito diferente da sua originária, e apega-se às pessoas do lugar, não conseguindo mais colocá-las para fora. A obra vai retratar as duas realidades diametralmente opostas, sem esconder, por um só instante, a crítica social da qual está imbuída. Assim, de um lado, temos a elite branca - fútil, hipócrita, desocupada, inútil e, claro, racista. A maneira debochada como a elite branca é mostrada no filme arranca risos do espectador - as relações entre os personagens brancos são falsas, frágeis, ditadas por regras sociais e não por laços de afeto e ainda que tudo seja aparentemente lindo e perfeito, intui-se suas bases precárias. No outro extremo, temos a realidade da população negra moradora do prédio adquirido por Elgar - aqui, as relações mostram-se evidentemente mais sólidas, mais verdadeiras e infinitamente mais "sanguíneas", baseadas em laços de afeto, união, cooperação e suporte. É interessante como o filme arranca o "menino" mimado daquela vida confortável, mas vazia e falsa, e o "joga" na realidade seca, mas vibrante e cheia de vida dos moradores do prédio. O choque de realidade fará com que nosso protagonista amadureça, dispa-se de preconceitos, assuma posturas mais decididas, sensibilize-se, torne-se mais humano e solidário - e afaste-se da frieza de sua origem. A obra é muito - MUITO! - crítica, mas sempre com um tom ligeiramente jocoso, meio debochado, tragicômico e o riso decorrente vem impregnado de certo desconforto, pois consciente do peso de anos de preconceito e sofrimento vividos por aquela população negra e sua luta para se libertar da dominação branca. A narrativa é não linear e há muita liberdade formal na obra, é até difícil definir: temos acontecimentos presentes, memórias, insertos meramente ilustrativos e até um momento de quebra da quarta parede, quando o protagonista fala diretamente com o espectador (logo nos primeiros minutos do filme). O ritmo é bem pronunciado, com alguns momentos de distensão. Eu achei muito forte a maneira como a obra faz a distinção entre os dois "mundos" - o da elite, onde tudo é muito claro, as roupas são leves, esvoaçantes, a música é suave, tudo parece falso, orquestrado, fútil, engessado... e "morto"; e o mundo "real", onde há cor, contraste, expressividade, a música é vibrante, as pessoas se envolvem emocionalmente, tudo é muito vívido e intenso. É complicado descrever esse filme justamente por ele trazer tantos elementos diferentes, acho que não estou sendo nada clara... rs. O elenco é encabeçado por um insuspeito Beau Bridges - eu nunca imaginei que sua carreira era anterior à do irmão Jeff Bridges e nem que ele era tão bonitinho quando jovem! Eu gostei demais do trabalho do ator, ele consegue transmitir toda a desconstrução e renovação do personagem, a maneira como ele se recoloca perante a vida e família, o seu amadurecimento; ao longo da história, Elgar deixa de ser um menino, um "borra-botas", e se torna um homem responsável, leal e correto, e o ator faz muito bem essa transição. Lee Grant interpreta Joyce, a mãe de Elgar, uma mulher sofisticada na mesma medida em que é empolada, arrogante e caricata - a personagem posa de moderna mas é tão impregnada de ranço classista e racista quanto qualquer outra madame, e Lee Grant está tão bem na personagem que foi indicada ao Oscar e ao Globo de Ouro de Melhor Atriz Coadjuvante em 1971; Diana Sands interpreta Francine, a personagem mais trágica da história; Louis Gossett Jr. interpreta Cooper, um personagem brutal, numa interpretação impactante; Pearl Bailey interpreta Marge, também perfeita; e Marki Bey interpreta Lanie. Eu achei o filme delicioso, adorei seu sarcasmo, sua crítica, seu formato ousado e por vezes até confuso, realmente um "achado"! Vale bastante a pena! Recomendo! PS1 - título traduzido horroroso. Não sei por que não ficou a tradução do título original - "The Landlord", ou "O Proprietário". PS2 - "What a fuck" o cartaz do filme? Tudo o que ele trouxe de crítica social e de crítica ao racismo, ele ferrou com esse cartaz sexista, com a objetificação feminina e apelativo. Nossa... nota zero.
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