Filme do dia (61/2018) - "Cartas da Guerra", de Ivo Ferreira, 2016 - Angola, 1971. Antônio (Miguel Nunes) é um jovem médico português enviado a Angola para lutar na Guerra de Independência Angolana. No front, Antônio passa os dias entre ações militares e a escrita de cartas para sua amada esposa grávida.
Eu diria que esse é um filme sutil. Tudo nele é discreto e mesmo os escritos amorosos do personagem são envoltos em uma reservada elegância. Eu percebi dois planos na obra. Num primeiro plano, mais em evidência, estão as narrações das cartas apaixonadas de Antônio para sua esposa. Na maior parte das vezes, as cartas tratam de assuntos pessoais, declarações de amor e súplicas diversas; em raras vezes, há confissões do personagem acerca de seu estado de espírito ou observações acerca de detalhes da guerra. Mais interessante, ao meu ver, foi o segundo plano da obra. Numa posição meio periférica, surgem questões como choque cultural, dominação colonial, truculência das forças de segurança. Essas questões surgem, às vezes, num pano de fundo de uma cena (como em um momento em que, ao fundo, um prisioneiro é interrogado sob tortura, enquanto, num primeiro plano, o personagem trata de outros assuntos com terceiros), outras vezes, apenas ocupam poucos segundos na tela (como na cena das execuções). Apesar de discreta, há uma evidente crítica ao confronto, há um claro desconforto daqueles soldados (em especial, no caso do médico) em estar ali, numa terra distante da sua, com hábitos e tradições tão diferentes. O sentimento de não-pertencimento salta aos olhos - a antiga colônia em nada se parece com a sua metrópole, por que estar ali??? Sem dúvida, a condução do filme - essa narrativa em dois níveis, tão diferentes entre si - é interessantíssima, diria sofisticada e até ousada. Mas não é um filme muito fácil de assistir - as narrações das cartas, repletas de sentimentos pessoais, dão uma sensação de estarmos invadindo um espaço particular do personagem e da sua esposa, o espectador é quase um voyeur. O ritmo, super lento, acrescido da narração quase monocórdica, formam meio que um mantra - eu tive de lutar contra o sono, por vezes. Existe, sim, muita poesia contida no filme - há sentimentos aos borbotões: tristeza, saudades, paixão, desespero - mas tudo sutil, tudo educadamente posto, como se qualquer arroubo emocional se tornasse uma deselegância, uma clara falta de educação. Apesar de ser um filme sobre a guerra, quase não há cenas relacionadas a batalhas ou confrontos - até nisso a obra é discreta e "educada". É um filme mais gostoso de lembrar e analisar do que propriamente de ver. Esteticamente, achei um filme muito bonito - a fotografia P&B garante certa melancolia à obra, bem como os cenários abertos e despovoados. Percebo que é uma dessas obras que a leitura completa, a dimensão real vem com o tempo, não é imediata. Eu gostei mais do filme depois de algumas horas após tê-lo assistido. Mas, aviso, não é para qualquer um, tem meio que lutar para assisti-lo, tem que digerir aos poucos, não pode ter preguiça, do contrário vai odiá-lo. Só recomendo para quem está disposto a entrar nessa luta.
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