Filme do dia (15/2023) – “Entre Mulheres”, de Sarah Polley, 2022 – Em uma comunidade menonita isolada, no interior dos EUA, as mulheres têm sofrido com ataques sexuais noturnos. Após elas descobrirem os responsáveis, motivo pelo qual estes são presos, os homens da colônia se unem para pagar as fianças e libertá-los, exigindo que as mulheres locais os perdoem e os aceitem na comunidade. As mulheres, então, juntam-se para discutir que atitude tomar: não fazer nada a respeito, enfrentar os homens ou partir.
Baseado no livro “Women Talking”, de Miriam Toews, a obra é um retrato vívido e contundente da vivência feminina em um universo dominado pelos homens e sob regras estabelecidas única e exclusivamente por eles. Ao longo de 1h44min, temos uma verdadeira aula sobre o machismo estrutural e como todos – homens e mulheres – estão submetidos a rígidos conceitos acerca de como devem se comportar nessa sociedade patriarcal e falocêntrica. Através de longos e por vezes complexos diálogos, o filme expõe a forma como todos são vitimizados pela masculinidade tóxica e como as próprias mulheres são, muitas vezes, coniventes com o machismo, não apenas aceitando comportamentos impostos, mas, também, reproduzindo-os, indefinidamente, através de seus filhos e filhas. A violência à mulher permeia toda a narrativa e o público – em especial o feminino – é tomado por forte sentimento de indignação e impotência. Claro que, por se tratar de uma comunidade menonita, o machismo, o regramento e a submissão feminina são infinitamente potencializados, de maneira a tornar ainda mais evidentes as relações de poder que vinculam mulheres a esse universo pautado pelas necessidades e desejos masculinos. Cabe, ainda, ressaltar o papel de domínio e subjugação que a religião (cristã, no caso) assume, cujo controle é pautado principalmente pelo medo – na cultura menonita, a religião tem função central, dominando todas as esferas da vida e, na narrativa, é o principal (embora não o único) obstáculo à liberdade de ação e conduta das mulheres da colônia. Outro elemento que desponta, na história, como “freio” às mulheres é a família, que assume um papel de “âncora” – qualquer mudança de rumo nas atitudes das mulheres surge como uma ameaça à família, uma vez que esta é rigidamente entendida como “casal e filhos”. O filme abre inúmeras possibilidades de discussão acerca do machismo, do ambiente tóxico criado por este, da violência contra a mulher, do cerceamento à liberdade, da necessidade do feminismo, da virulência das religiões, dentre outros tantos temas. Por sua própria natureza, o filme é essencialmente feminino e intimista e conta com um elenco formado quase totalmente por mulheres, com exceção ao personagem August (que funciona aqui como o conhecido “nem todo homem”). A narrativa é linear, com alguns pequenos flashbacks e conta com uma narradora em off que pontua o início e o fim da história. O ritmo é bastante lento e pode afugentar quem está acostumado com uma narrativa mais ágil, mas o que falta em ritmo, sobra em emoção e tensão – a atmosfera do filme parece uma linha prestes a se partir de tão retesada, o ar é “pesado” e o ambiente um tanto claustrofóbico, principalmente na primeira metade do filme, cuja ação concentra-se totalmente na reunião das mulheres para discussão dentro de um paiol. A história do livro foi excelentemente transposta para as telas pelo roteiro da própria Sarah Polley, que acabou sendo agraciada com o Oscar (2023) de Melhor Roteiro Adaptado. A fotografia é escura, em tons amarronzados e privilegia planos fechados para explorar as expressões tensas das personagens. Os planos abertos são utilizados principalmente para dar a ideia de isolamento da colônia. Achei interessante a forma como o filme revela que não se trata de uma colônia de outro século, mas de uma comunidade religiosa datada do ano de 2010, reclusa por conta de sua cultura e crença (sem spoilers). É uma obra MUITO “falada”, a maior força do filme está justamente nos diálogos vigorosos, nas discussões acaloradas ou nas revelações murmuradas pelas participantes da discussão (com alguma participação do personagem August aqui ou ali, quase sempre lembrado de que não tem lugar de fala para entrar no debate). Como já mencionei, o elenco é quase exclusivamente feminino, com destaque para Rooney Mara como Ona, Claire Foy, maravilhosa como a indignada Salome, Jessie Buckley como a domesticada Mariche e Michelle McLeod como Mejal. A diva Frances McDormand tem uma pontinha como uma personagem antítese do que a atriz representa, a idosa Janz, favorável à manutenção de tudo como está. Como único home em cena, Ben Whishaw. O elenco todo está muito bem e conduz maravilhosamente bem a trama. Eu fiquei entre transtornada e tocada com o filme e fiquei estarrecida de quão pouco ele foi divulgado, principalmente por tocar em assuntos tão atuais e necessários. Gostei demais e recomendo como lição de casa obrigatória.
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