Filme do dia (83/2024) – “Hanyo, A Empregada”, de Kim Ki-young, 1960 – Um professor de música (Kim Jin-kyu) e sua esposa grávida (Ju Jeung-ryu) contratam a empregada Myung-sook (Lee Eun-sim) para ajudar nos afazeres domésticos. A convivência é tensae a assustadora evolução poderá terminar de forma trágica.
Considerado um dos maiores clássicos do cinema coreano, cujo ecos podem ser vistos em obras como “A Criada” (2016) e “Parasita” (2019), o filme possui diferentes camadas que propiciam interessantes discussões. Numa primeira camada, encontramos questões ligadas às relações domésticas, relacionamentos amorosos, afetivos e familiares e moralidade; numa segunda camada, temos uma visão das relações socioeconômicas, estratificação social e luta de classes no mundo capitalista. Tudo começa quando uma família de classe média em leve ascensão socioeconômica contrata uma jovem empregada para ajudar nos trabalhos domésticos. Aqui já surgem as duas linhas de tensão - a disputa amorosa-sexual pelo homem da casa e o conflito de classes inerente às relações patrões-empregados -, as quais, por vezes se fundem. A moça, desprezada por ser apenas uma criada, não desperta o interesse afetivo do patrão, mas, por sua juventude e frescor, atiça sua sexualidade. Percebendo isso, a moça logo vê uma oportunidade de usurpar o lugar da esposa, um “cargo” almejado tanto economicamente, quanto por seu status. O desenvolvimento deste conflito, deixa claro o profundo fosso que existe entre as diferentes classes sociais – como ocorre no já mencionado “Parasita”, os trabalhadores são vistos como inumanos por seus patrões, desmerecedores de qualquer respeito ou consideração, quase objetos domésticos à disposição dos donos da casa. Assim, o conflito que o filme retrata é, na realidade, uma metáfora de algo maior e bem mais genérico, muito embora a história recubra isso com tons mais amenos ligados a relações afetivo-sexuais. Dois pontos me chamaram a atenção e incomodaram na obra: o primeiro refere-se a questões de gênero que permeiam todo o filme. Temos uma submissão evidente das mulheres em relação ao homem da casa – tanto a esposa, quanto a empregada se sujeitam ao professor das mais variadas formas e a violência impera. Além disso, existe uma disputa entre essas mulheres, levando àquela velha narrativa que coloca uma mulher contra a outra e põe por terra qualquer possibilidade de sororidade. Por este viés, o filme chega a ser odioso, uma verdadeira aula de machismo e preponderância do patriarcado, emudecimento e submissão femininos, o que, juro, me perturbou profundamente. O segundo ponto que também me “pegou” relaciona-se à moralidade meio torta da narrativa – eu não sei dizer se foi intencional ou não, mas existe predominância da moralidade de costumes sobre a ética. Esclareço: na história, uma infidelidade parece infinitamente mais grave que induzir uma pessoa a se auto lesionar, por exemplo (não dá para ser mais específico sem entrar em spoilers gravíssimos). A cena final, por sua vez, chegou a me irritar pela “lição de moral” explícita (que eu desconfio que foi usada só para amenizar o discurso, um tanto quanto revolucionário e extremo para os idos de 1960, ainda mais num país tradicionalista como a Coréia). Enfim... é um filme de conteúdo complexo, muito bem desenvolvido, que conta com diferentes possibilidades de leitura (da mais rasa à mais profunda) e que serve de referência para o cinema coreano até hoje. O ritmo começa pausado, mas ganha força e agilidade a cada instante. A atmosfera é de tensão, chegando aos limites do horror (ainda que eu, pessoalmente, não concorde com a presença dele num box de terror). Formalmente, o filme é um achado! O diretor consegue imprimir tantas emoções apenas por suas escolhas de planos e posicionamentos de câmera, é incrível! A fotografia P&B bem contrastada ajuda no clima de tensão, além de criar uma beleza estética incomum – este é um filme essencialmente belo, nem consigo explicar. Com relação às interpretações, destaco a expressividade extrema das atrizes envolvidas no triângulo amoroso – muito embora exista um maior domínio da atriz Lee Eun-sim como a empregada, a intérprete da esposa, Ju Jeung-ryo, não fica atrás no quesito. Mesmo em cenas exageradas, onde o melodrama prevalece, o trabalho de interpretação do elenco é sublime – e isso se estende, inclusive aos filhos do casal. O filme é daqueles que pede outras visitas, justamente pela complexidade dele e por suas inúmeras camadas, possibilitando um número impressionante de interpretações. Gostei DEMAIS e recomendo, em especial para cinéfilos de plantão. Segundo o Justwatch, está disponível para assinantes do Now (ou, como sempre, através de torrent ou mídia física).
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