Filme do dia (209/2020) - "Madame Bovary", de Jean Renoir, 1934 - França, século XIX. Filha de um pequeno proprietário de terras, Emma (Valentine Tessier) casa-se com o médico do interior, Charles Bovary (Pierre Renoir), com vistas a ascensão social. Rapidamente, Emma percebe que a tão almejada ascensão não virá e passa a se entediar com a pacata vida de casada, bem como com o cotidiano do interior. Ao conhecer o bon-vivant Rodolphe (Fernand Fabre), passa a tê-lo como amante.
Incrível como duas versões de uma mesma obra podem ser tão diferentes!!!! Baseadas, ambas, no romance homônimo de Gustave Flaubert, a versão de "Madame Bovary" de Renoir é completamente diversa da de Chabrol (1991). Não que os fatos narrados não sejam os mesmos - os dois filmes retratam absolutamente os mesmos acontecimentos encontrados no livro. Mas, se em Chabrol conseguimos perceber uma justificativa para as angústias de Emma decorrentes da opressão feminina pela sociedade extremamente machista da época e, dessa maneira, surge-nos alguma solidariedade pela personagem, em Renoir essa perspectiva é completamente inexistente, esvaziando qualquer sentimento de empatia por Emma. Claro que entendo que isso é resultado das diferentes percepções de diferentes épocas - Renoir, nos anos 30 nem sonhava em fazer uma leitura com viés feminista, é evidente. Mas não deixa de ser interessante perceber como esse olhar diferenciado pode interferir no resultado final de um filme. Atendo-nos à obra de Renoir, a personagem Emma surge com bem menos contradições - ainda que elas existam, evidentemente. Esvaziada de maiores significados, a conduta de Emma nos perece um mero capricho egoísta e fútil - sentimento que é aumentado por uma percepção bem mais empática pelo marido de Emma, o médico Charles, um personagem altruísta, gentil, simples, completamente diferente da esposa. E foi com esse olhar de reprovação que recebi a personagem Emma (ainda que me culpe pelo ranço moralista), claramente instigado pela leitura de Renoir. Dentro de sua proposta, o filme é irretocável. Acompanhamos a trajetória da personagem até o seu ocaso totalmente envolvidos pela narrativa. Poderia me ater à fotografia P&B suave ou à montagem responsável pelo ritmo marcado da obra, mas vale mais a pena destacar o incrível trabalho de direção de atores. O elenco está absolutamente sólido nas interpretações. O trabalho de Valentine Tessier como Madame Bovary é fantástico - o bacana é que a perfeição de sua interpretação está muito mais nos detalhes, nos pequenos trejeitos e nas cenas mais calmas e intimistas do que nos momentos de intensa emoção. Os olhares de tédio profundo da personagem, os olhares perdidos no nada ou cheios de aversão ao (pobre) marido, aí que estão os melhores momentos da atriz. Também gostei que a Madame Bovary de Renoir não é nenhuma atriz de beleza estonteante, alguém totalmente fora da curva - não, Valentine Tessier é uma mulher normal, sem atrativos excepcionais, alguém que poderia ser encontrada em qualquer supermercado, o que traz a personagem bem mais para a realidade do que se fosse uma deusa da beleza. Pierre Renoir também merece destaque como Charles Bovary, interpretado como um sujeito simpático, meio bonachão, e completamente dedicado à esposa. A versão de Renoir é ótima, merece ser vista sem dúvida alguma, mas proponho ao espectador assistir, também, à versão de Chabrol, para fazer essa comparação e testar se minha percepção é reproduzida ou se fui eu que viajei bonito, rs. Filme espetacular, recomendo.
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