“Manas”, de Marianna Brennand Fortes, 2024
- hikafigueiredo
- há 14 minutos
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Filme do dia (39/2025) – “Manas”, de Marianna Brennand Fortes, 2024 – Marcielle (Jamilli Correia) é uma adolescente de 13 anos que vive, junto com seus pais e irmãos, em uma paupérrima comunidade ribeirinha na Ilha de Marajó. Cultuando a imagem de sua irmã mais velha que foi embora do local “com um homem bom”, Marcielle logo descobre o motivo que levou a irmã a fugir do lugar e nunca mais voltar. Agora Marcielle precisará lutar para quebrar um longo ciclo de violência vivido pelas meninas daquelas paragens.

Incômodo, contundente, indigesto... e necessário. “Manas” é um daqueles filmes que o espectador não queria ter visto, mas sabe da importância de ele existir. É um verdadeiro grito por ajuda de milhares de jovens meninas que vivem cercadas de violência e dor e sem ter a quem recorrer. A história acompanha o cotidiano de Marcielle, uma jovem de treze anos cuja família vive na Ilha de Marajó, abaixo da linha da pobreza, sob insegurança alimentar e sobrevivendo da coleta do açaí e da caça. Conforme cresce, Marcielle passa a ser alvo de assédio e abusos vindo dos homens ao seu redor – e descobre a solidão de ser mulher naquele lugar. Não queria dar spoiler, mas aqui não tem muito como não fazer isso, pois o filme trabalha justamente com os sinais iniciais do abuso sexual das meninas, que surgem dos locais mais conhecidos e vindos das pessoas mais íntimas das vítimas. De pequenos ciúmes a condutas que, vistas sob o olhar da ingenuidade, podem parecer meros gestos de afeto, a obra escancara como o abuso sexual infantil começa sorrateiro, disfarçado de preocupação e amor, e escala lentamente até chegar na maior das perversidades, que é o sequestro da inocência e da confiança das vítimas impúberes. Mas, calma, o horror não termina aí. O filme ainda trabalha com a questão da perpetuação da violência, que é reproduzida através de gerações de mulheres caladas, atemorizadas, submetidas aos homens por diversos mecanismos de silenciamento, dentre as quais as famílias e as pérfidas igrejas evangélicas que pregam que tudo deve ser visto como “obra de Deus”, “e que qualquer obstáculo que surja acontece porque os fiéis se afastaram do caminho de Deus” – em suma, não basta ser vítima, as mulheres ainda são incentivadas a acreditar que a culpa da violência é delas, “por terem se afastado de Deus” (!!!!). A naturalização da violência, inclusive sexual, pelas próprias mulheres e vítimas é estarrecedora – nossa protagonista busca acolhimento e escuta que “é assim mesmo”, “todas as meninas passam por isso”, “seja forte e acredite nos desígnios de Deus”. Mesmo o único lugar que poderia ser de denúncia – a escola -, existe sob as regras do patriarcado e da religião que o perpetua, o que pode ser entendido através das folhas dos livros grampeadas para que as crianças não tenham contato com a educação sexual e o conhecimento advindo dela, como o reconhecimento de atitudes abusivas. O filme escancara a hipocrisia que existe nos meios religioso e familiar, cujo discurso de proteção e acolhimento vai de encontro com as ações dos homens ali inseridos. A obra é uma pedrada certeira e necessária, principalmente por retratar tão bem o caminho da podridão, desde seus primórdios, tornando-se um verdadeiro alerta para os primeiros sinais de abuso. Outras questões colocadas na narrativa são a gravidez precoce, a erotização infantil, o acesso de crianças ao álcool, a prostituição de meninas jovens – todos os horrores possíveis são desfiados na história, sempre de forma muito pertinente e não de maneira espetacularizada. A narrativa inicia um pouco arrastada, mas logo toma corpo e ganha uma atmosfera de angústia e tensão difíceis de digerir. O filme acerta em não conter violência gráfica explícita: as sugestões e elipses de tempo são mais que suficientes para dar a dimensão da dor e do horror que a nossa protagonista – e não só ela – vivencia. Formalmente, a diretora optou pelo naturalismo, evitando fotografia e desenho de produção rebuscados, que poderiam desviar a atenção e legar alguma beleza a uma história que não tem nada de bela, então não espere imagens poéticas dos igarapés e da natureza pungente daquele lugar. Por outro lado, o trabalho de atuação do elenco é incrível, começando pela estreante Jamilli Correia, a qual jamais atuara na vida e, mesmo assim, entregou uma interpretação brilhante, principalmente pelo silêncio angustiado e olhar dolorosamente penetrante da protagonista. No papel de Marcílio, Rômulo Braga, ótimo nas sutilezas do personagem, e, como Danielle, Fátima Macedo, igualmente perfeita como a mãe silenciada e submissa. Completando o elenco principal, Dira Paes, que nunca, jamais, errou, como a delegada Aretha e que surge como um flash de esperança naquele mundo de ignorância e injustiça. A obra é maravilhosa, muito embora extremamente dolorosa e difícil de digerir. Há um diálogo forte deste filme com “Anjos do Sol” (2006) e eu o achei mais difícil de assistir que “Para Sempre Lilya” (2002) – sim, que isso sirva de alerta. Repito: filme necessário e obrigatório. Atualmente em cartaz nos cinemas (mas em sessões em péssimos horários).
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