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hikafigueiredo

“O Banho do Diabo”, de Severin Fiala e Veronika Franz, 2024

Filme do dia (127/2024) – “O Banho do Diabo”, de Severin Fiala e Veronika Franz, 2024. Áustria, 1740. A jovem Agnes (Anja Plaschg) casa-se com seu amado Lukas (Lukas Walcher). Ela se muda para a casa dele e assume seu papel de esposa, o qual, em pouco tempo, torna-se penoso, dadas as expectativas criadas e a lista infinita de responsabilidades que lhe recaem. Gradativamente, a existência de Agnes ao lado de Lukas torna-se pálida, sem cores, sombria e a jovem começa a ansiar por qualquer coisa que lhe retire daquele inferno.





Um filme de terror real, apoiado na condição da mulher nos séculos XVII e XVIII, é o que temos nessa obra. Baseado em pesquisas históricas daquele período, o filme revela o sofrimento imposto às mulheres por tradições, religiões e superstições que atravessam os séculos. Na história, Agnes acaba de se casar com Lukas, por quem nutre sincero amor. Ela assume com convicção seu papel de esposa e sonha em engravidar e lhe dar um filho rapidamente. No entanto, em pouco tempo, Agnes percebe que sua existência perdeu o brilho e a razão de ser: ela não tem liberdade, ela precisa cumprir um sem-fim de tarefas diárias, ela deve servir seu marido, sua sogra exige-lhe condutas e interfere em seu cotidiano e, acima de tudo, ela não consegue engravidar, uma vez que seu marido, impotente, a rejeita sexualmente. O fato de não engravidar pesa para Agnes, que sempre sonhara em ser mãe, além de ser o papel esperado para qualquer mulher daquela época. Pela tradição, uma mulher sem filhos era incompleta e falha em sua função, recaindo, tal responsabilidade, unicamente na conta da mulher. Percebendo-se sem saída, Agnes entra em um profundo processo depressivo e pensamentos intrusivos passam a lhe assombrar. O cerne da obra é o patriarcado e a condição da mulher, a qual é sobrecarregada por exigências e expectativas e culpabilizada por tudo. O casamento, aqui, surge como um castigo para as mulheres – confinadas naquela condição e obrigadas pelo sacramento do matrimônio, elas servem seus maridos e são responsabilizadas por qualquer coisa que aconteça ao casal. A ausência de uma gravidez, naquela realidade, era motivo de acusações e estigmatizações, mesmo que, para tanto, fosse necessária a participação do homem no processo, cuja responsabilidade jamais era (e é até hoje) cobrada. O filme é hábil em mostrar quão penoso é ser mulher – já é hoje, imagine em tempos em que a mulher era ainda mais calada e vista como propriedade do marido – e qual o peso das tradições e religião nessa questão.  O filme consegue, ainda, representar com fidelidade todo o processo depressivo da personagem – Agnes entra em uma espiral ao inferno e o que começa como um sentimento de impotência, rapidamente torna-se um sofrimento desmedido e ilimitado. Algo que me chamou a atenção – e que sempre me chama – é quão frequente mulheres são algozes de outras mulheres. Aqui, a sogra de Agnes é praticamente uma inimiga dentro de casa – de forma sutil, ela critica qualquer movimento da moça, ela exige que ela aja conforme suas expectativas, ela responsabiliza Agnes por qualquer coisa que saia do planejado, enquanto mima o filho e se comporta como infalível. Como faz falta a sororidade! Por fim, todo o sofrimento imposto à personagem é chancelado pela religião cristã, tendo em vista a impossibilidade de romper um casamento, bem como de se tirar a própria vida, visto como pecado mortal e sem qualquer possibilidade de perdão – aguente seu sofrimento e sofra calada. Com um roteiro impecável, sem qualquer ponta solta, o filme traz uma narrativa linear e em ritmo lento e constante. A atmosfera é de desespero completo – como acontece com Agnes, não há qualquer alívio para o espectador. Extremamente convencional, o filme é, tecnicamente, irretocável, do desenho de produção de época fidelíssimo, à bela fotografia colorida contrastada (destaque para as cenas noturnas, belíssimas). A trilha sonora do filme merece destaque: seja através de ruídos indecifráveis e incômodos, seja pela música que mais parece um lamento, tudo é extremamente perturbador. A interpretação poderosa da atriz Anja Plaschg não deixa dúvidas quanto ao estado de dor e desespero da personagem – Agnes definha defronte aos olhos do espectador, é assustador. Indicado como representante da Áustria no Oscar (2025) na categoria de Melhor Filme Estrangeiro e vencedor do Urso de Prata no Festival de Berlim (2024), o filme é “só” sensacional!!! Eu fiquei impressionadíssima com a obra e, ao mesmo tempo, transtornada por sua história. O desfecho, chocante, nos faz concluir que a humanidade é bárbara e cruel em sua essência, e, suas principais vítimas, são as mulheres e crianças. Recomendo demais. Assistido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

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