Filme do dia (288/2021) - "O Segundo Rosto", de John Frankenheimer, 1966 - Arthur Hamilton (John Randolph), um bem sucedido banqueiro de meia idade, mas infeliz com sua existência, é convencido a se submeter a um procedimento que lhe daria novos rosto e identidade após simular sua morte. Assim, ele se transforma em Anthiocus Wilson (Rock Hudson), um criativo pintor.
Imagine que você pudessem dar um "reset" na sua vida e mudar tudo aquilo que te deixa deprimido ou infeliz. Imagine a possibilidade de retornar aos sonhos de juventude, apagando os atalhos que te fizeram desviar do caminho que você planejou desde cedo. Imagine uma segunda chance, um recomeço. Pois esta é a premissa deste filme de ficção científica essencialmente filosófico e, como tal, não muito otimista, uma vez que evidencia que mudanças externas e conjunturais não suprem anseios internos e que mudanças significativas na nossa existência precisam partir de dentro e não de fora. O personagem Arthur existe em evidente inércia - ele é bem sucedido, tem uma carreira sólida, uma família constituída e saúde, o que não o impede de ser tremendamente infeliz. Preso a um casamento de aparência, pois frio e destituído de intimidade legítima, e consumido pelo trabalho, Arthur é levado a acreditar que sua felicidade está ao alcance das mãos, bastando, para isso, apagar a velha existência e colocar outra no lugar. Através de uma secreta e obscura empresa, Arthur simula sua morte e se submete a um procedimento cirúrgico que lhe refaz as feições e modifica o timbre de voz. Após, seguindo suas aspirações de juventude, é lhe dada nova identidade, surgindo, então, Anthiocus "Tony" Wilson, um artista plástico em ascensão. Se, num primeiro momento, tudo parece ideal, aos poucos "Tony" percebe que essa existência é ainda menos satisfatória que a anterior. A narrativa adentra por temas existencialistas e coloca o espectador para pensar acerca de de sua própria vida, o que é importante, como se construiu sua trajetória nesse plano, e por aí afora até onde as angústias humanas puderem ir. A narrativa é linear, em ritmo bem marcado, principalmente para uma obra tão filosófica. O sentimento que nos surge é de angústia, dúvida e temor e há momentos em que tudo parece um grande e infinito pesadelo. Desde o início, a situação vivida pelo protagonista é kafkiana, pois ele entra num fluxo de acontecimentos sem tomar parte ativa nisso, ou seja, ele continua na inércia, sem qualquer poder de decisão ou ação. Não pense que a temática densa, complexa, fica limitada ao texto e ao racional - o filme é profundamente sensorial e muitos sentimentos aflorarão no espectador de forma irracional. Muito disto advém da forma da obra, levada com uma linguagem cinematográfica criativa, fora do padrão hollywoodiano convencional. Há cenas, inclusive, que nos remetem ao expressionismo alemão, cenas fortemente oníricas, com imagens distorcidas e que levam a uma percepção aflorada. A fotografia da obra, em P&B que pode ser mais suave ou mais contrastada, dependendo do efeito desejado, é marcada por planos muito criativos - há plongées e contra-plongées para todos os gostos, inúmeros planos detalhes de rostos, muitos dos quais distorcidos, planos com eixo inclinado que dão a sensação de desequilíbrio, efeitos de distorção, câmeras em "primeira pessoa" simulando a visão do personagem, enfim, tudo é muito ousado, quase experimental para a época. A trilha sonora é pesada, com instrumentos que parecem até desafinar, acompanhando aquele estranhamento da imagem. O elenco principal é composto por Rock Hudson fora do seu comumente papel de galã - seu personagem é trágico, assombrado por dúvidas, dores e arrependimentos os mais diversos, é clara sua angústia interior e que a nova identidade não consegue suprimir e o ator dá conta do recado; John Randolph interpreta Arthur, a persona original, e o pouco tempo em cena não o impede de apresentar o desconforto dele em sua "pele"; Salome Jens interpreta Nora - eu amei a personagem, pelo menos a que é apresentada inicialmente, e considero um ótimo trabalho da atriz. Algumas cenas merecem destaque: a cena em que Arthur entra na empresa, com fortíssima inspiração expressionista; a incrível e deliciosa cena da celebração dionísica - gente, mas o que foi aquilo, que ousadia e que capacidade de festejar a vida!!!! Poderosíssima! -; a cena final, o pesadelo em níveis titânico, a angústia levada ao extremo. O filme concorreu ao Oscar de Melhor Fotografia e foi um dos indicados à Palma de Ouro em Cannes naquele ano. Eu fiquei bastante impressionada com essa obra, em especial pela sua capacidade de envolver emocionalmente o espectador. Gostei demais e recomendo.
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