Filme do dia (126/2023) – “O Senhor das Moscas”, Peter Brook, 1963 – Após o avião em que estavam sofrer um acidente, um grupo de crianças vai parar em uma ilha deserta. Num primeiro momento, elas se unem para enfrentar qualquer adversidade, mas rapidamente formam-se dois grupos, um liderado por Ralph (James Aubrey), que defende a cooperação, e outro encabeçado por Jack (Tom Chapin), que se vale da força, trazendo terríveis consequências.
Baseado no livro homônimo de William Golding, a obra é uma triste e desesperançada alegoria sobre a natureza humana. Ao longo da história, as crianças – jovens meninos de um colégio britânico – revelam o quão violenta e autoritária é a essência do ser humano, muito mais inclinado ao uso da força e da submissão dos mais fracos pelos mais fortes do que à prática da cooperação e da empatia. O desenrolar da narrativa chega a ser perturbador, pois em pouco tempo caem por terra qualquer ética, respeito ou, até mesmo, os mais básicos preceitos civilizatórios, aproximando aquele grupo de crianças da mais abjeta e pura barbárie. Acompanhando a história, observamos a violência tomar as crianças que, unidas em torno de um líder – logicamente um dos mais fortes e, indubitavelmente, o mais feroz e autoritário -, passam a agir como uma “manada”, seguindo cegamente, sem qualquer questionamento, aquele que os lidera. Há, ainda, a perda da ideia de inocência infantil – ainda que as crianças menores, talvez por sua fragilidade física, aglutinassem-se em torno da figura mais gentil e empática, e, portanto, menos assustadora e ameaçadora, os meninos mais velhos optavam por seguir o líder mais selvagem. Alguns questionamentos afloraram em mim: onde entrariam as mulheres nesse contexto? Uma vez que todos as crianças ali eram do gênero masculino, seria aquela violência inata ou um reflexo da nossa sociedade machista, que valoriza essa masculinidade agressiva, tóxica e irracional? Como se dá a construção da ética na sociedade e por que a moralidade e a racionalidade daqueles meninos foi tão rapidamente esvaziada? Como são construídos os laços de afeto e respeito entre as pessoas e por que isso se mostrou tão frágil naquele contexto? O que leva um amplo grupo de pessoas a optar pelo líder autoritário e repressor tendo, como alternativa, um líder democrático e que dá voz aos seus “liderados”? A história é profundamente filosófica, abrindo margem a infinitas discussões acerca da condição humana e da construção social. Eu já havia visto a refilmagem da obra de Harry Hook (1990), mas lembro pouco dos detalhes do filme (pretendo rever para poder comparar as duas versões). A fotografia P&B do filme não me agradou tanto quanto a história – achei uma fotografia meio chapada, em uns tons acinzentados sem muito contraste e, em grande parte, fazendo uso de posições de câmera meio óbvias e sem criatividade. Acho que faltou um certo cuidado com a imagem, apostando-se na evidente excelência do texto. Apesar disso, duas cenas mostraram-se irretocáveis: a celebração noturna, catártica e completamente instintiva (e assustadora, claro), e a fuga de Ralph pela ilha esfumaçada, uma cena que me trouxe muito desespero e desalento. O ritmo do filme começa lento, mas cresce vertiginosamente ao longo de seus 90 minutos de duração da obra. A atmosfera é de incredulidade, desalento, desespero e, ao menos para mim, profunda tristeza – o filme ataca em cheio a minha visão romântica do ser humano em geral e das crianças em particular. A musicalidade do filme apoia-se em sons tribais e gritos de guerra. As interpretações mostraram-se a contento, mas, na minha opinião, quem se sobressai é Hugh Edwards como Piggy, um menino gordinho, asmático e míope que simboliza a frágil razão e a esvanecente empatia do grupo; James Aubrey interpreta um “Ralph” equilibrado e racional e Tom Chapin, também muito bem, a selvageria em forma de pessoa na pele de Jack. A obra concorreu à Palma de Ouro em Cannes (1963), perdendo para “O Leopardo”, de Luchino Visconti (poxa, mas olha a concorrência também... rs). O texto do livro é incrível e foi muito bem transposto para o cinema. Agora rever a versão de 1990 para tecer considerações. Gostei muito e recomendo.
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