Filme do dia (124/2024) – “Outro”, de Thibault Emin, 2024 – Anx (Matthieu Sampeur), um rapaz introvertido e recluso, conhece Cassandra (Edith Proust), uma jovem vívida e alegre, dando início a um romance. Quando um estranho vírus surge fazendo com que coisas se fundam – inclusive pessoas e objetos – o casal se vê isolado no interior de um apartamento, tendo de lutar para sobreviver.

Misturando romance, ficção científica e terror, o filme é uma gigantesca viagem de ácido lisérgico e se estende até os limites da criatividade de seu diretor. A história apocalíptica começa bem comum – um casal acaba de ter uma boa noite de sexo casual e vive aqueles constrangedores momentos posteriores, onde cada um precisa conviver com um completo desconhecido e saber um pouco sobre seu companheiro recente. O contraste entre os parceiros é evidente – Anx é tímido, metódico com suas coisas, claramente neurótico e hipocondríaco e envergonha-se de sua nudez; Cass é extrovertida, alegre, debochada e o que se poderia chamar de “maluquinha”. Sem nada em comum, o casal acaba confinado no apartamento de Anx, quando um estranho e letal vírus começa a atacar seres animados e inanimados, fundindo-os em uma massa disforme de carne e matéria inorgânica. Agora o casal precisa lutar por sua sobrevivência enquanto descobre o verdadeiro afeto entre eles. Pois é aí que a coisa começa a ficar estranha, pois o vírus avança quase independentemente de qualquer ação dos envolvidos. O argumento é muito bom, não tenho dúvida, mas, ao roteiro que segue, falta consistência e regularidade. Alguns acontecimentos ficam sem qualquer explicação e ocorrem de uma maneira abrupta – simplesmente a conta não fecha e quem for esmiuçar os detalhes da história vai certamente encontrar diversos pontos obscuros, verdadeiros “buracos” na narrativa. Outro ponto negativo é que eu tive a sensação de que o diretor não soube quando parar. Ele continua esticando a história, indo claramente além do que deveria, o que fragilizou o bom argumento. Por fim, ainda como questão negativa, existem pontos da narrativa que ficaram soltas – tenta-se fazer uma relação da outrora doença da mãe de Anx com as experiências recentes do rapaz e isso fica muito tênue, não é uma contraposição sólida. Maaaaas, o filme também tem méritos. A caracterização dos personagens é muito bem-feita – em menos de três minutos, já conseguimos formar na nossa cabeça um perfil de Anx e Cass e o quão diferentes eles são, isso sem precisar dizer qualquer palavra, apenas através do comportamento deles. No entanto, o que definitivamente o filme tem de melhor, é a atmosfera de pesadelo que o diretor habilmente estabelece. É uma mistura sólida de claustrofobia, medo, angústia e urgência vivida pelo casal – eles pressentem que eles têm pouco tempo e que ele deve ser aproveitado no seu limite, muito embora eles não estejam nem um pouco dispostos a se entregar sem lutar. Devo dizer que foi um dos filmes que conseguiu criar o pior clima de pesadelo que eu me lembro de ter visto, realmente muito bom. Tecnicamente, o filme também peca pela irregularidade. A fotografia inicial é muito colorida e, de uma maneira quase mágica, que eu não consegui sequer perceber quando foi, ela se torna P&B – sério, a transição de uma para a outra foi imperceptível e isso foi muito legal. A fotografia explora com intensidade os planos muito próximos – tudo é visto em detalhes, como em uma lente de aumento, o que ajudou a criar um certo incômodo; algumas cenas perto do fim, em tons de amarelo, também funcionaram, dando a sensação de fim dos tempos, de impossibilidade de sobrevivência, bem angustiante. A sonoridade do filme também é construída para ser perturbadora – ela é barulhenta, cheia de ruídos não identificáveis – nem por nós, nem pelos personagens -, alternando alto volume com um silêncio incômodo – muito criativo e bem concebido. O desenho de produção é sublime até cerca de três quartos do filme – o último quarto é aquele que eu falei que o diretor não soube quando parar e desandou por completo a obra: são cenas e mais cenas construídas por inteligência artificial (isso é mais claro que o sol!) e verdadeiramente dispensáveis. A estética do filme é destruída por este final, eu achei um lixo e uma pena. As interpretações foram a contento – achei o trabalho de Matthieu Sampeur mais marcante, mas ambos fizeram bem a lição de casa. Destaque absoluto para a cena da fusão – ela é completa: visualmente belíssima e responsável por um acirramento da atmosfera perturbadora. Passando a régua, eu diria que é um filme muito criativo, com muito potencial, que foi estragado pela insistência do diretor em estender a história aos seus limites. Recomendo para quem quer ter uma experiência lisérgica sem ter de tomar chá de cogumelo... rs. Assistido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
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