"Sou Cuba", de Mikhail Kalatozov, 1964
- hikafigueiredo
- 23 de nov. de 2020
- 3 min de leitura
Filme do dia (419/2020) - "Sou Cuba", de Mikhail Kalatozov, 1964. Numa Cuba imediatamente pré-revolução, quatro histórias distintas e independentes retratam as condições de vida e a tensa situação política do país: na primeira, Maria esconde de um pretendente a forma como ganha a vida; na segunda, um camponês descobre que as terras onde cultivava cana foram vendidas para uma grande empresa internacional; na terceira, estudantes entram em conflito com forças do governo de Fulgencio Batista ao serem descobertos produzindo panfletos revolucionários; na última, uma família camponesa desvinculada da política é ameaçada pelo exército de Batista.

Esta é uma obra que merece ser analisada muito separadamente sob dois aspectos: quanto ao conteúdo e quanto à forma. No que tange ao conteúdo, ainda que traga interessante discussão acerca das mazelas do capitalismo, em especial daquele implantado em Cuba, ao ser produzido pela URSS e dirigido por um diretor soviético, acabou por perder totalmente a identidade do país retratado. Em outras palavras, o filme traz uma visão estrangeira dos problemas sociais, econômicos e políticos enfrentados por Cuba no período imediatamente anterior à Revolução Cubana. Mesmo que a obra traga um eloquente retrato de um país submetido ao pior do capitalismo e totalmente dominado e explorado pelos EUA, as "cores" trazidas não são aquelas vistas pelos olhos locais e acaba sendo um retrato genérico do Terceiro Mundo, ignorando qualquer particularidade do lugar. Assim, mostram-se as desigualdades sociais evidentes existentes entre os abastados e a população miserável, a exploração dos camponeses, as tentativas em calar os estudantes e a violenta repressão a qualquer tipo de manifestação pelo governo estabelecido - tudo muito lugar comum, ainda que não de todo equivocado. E não tem como negar que o tom trazido é, sim, muito panfletário, com evidente intuito de "levantar as massas", para usar termos bem chavões. Eu achei que os estrangeiros - norte-americanos, claro - retratados ficaram por demais exagerados, tipo "vilão de filme mexicano", e olha que estou longe de ser simpatizante ou defensora daquele povo, assim como achei excessiva a vitimização da população cubana. E o que foi o "branqueamento" dos cubanos??? Com uma grande parcela de negros em sua população, na obra quase não temos representantes da raça (exceção à primeira história). Assumo que amei a narração em off, achei as falas extremamente poéticas e marcantes. Bom... em suma... temos conteúdos ligeiramente problemáticos no filme. Já no que concerne à forma, o filme é ... deslumbrante, para falar o mínimo. Absolutamente autoral e detalhadamente trabalhado para ser artístico, o filme é um desbunde e me deixou inebriada. As imagens são belíssimas e a câmera - curiosa, nervosa, perscrutadora - usa e abusa de planos sofisticados e inusuais. Acho que não existe uma única cena óbvia ou "tradicional" no filme. São planos-sequência após planos-sequência, muitas câmeras na mão, uso contumaz de objetivas diferenciadas (como grande-angulares), a utilização insistente de movimentos de câmera e gruas, cenas e planos que eu nem tenho ideia de como foram feitos, tal a complexidade do resultado. A fotografia P&B, por vezes suave, por vezes muito contrastada, traz uma poesia extra, bem como a trilha sonora, que vai de um delicado violão a jazz de qualidade. As interpretações foram todas bastante sanguíneas, mas destacaria os olhares doloridos de Luz Maria Collazo como Maria/Betty e a expressão profunda do ator que interpretou Mariano (e cujo nome não consegui descobrir). Destaque para a cena de Henrique enveredando pelo prédio da Universidade e para o cortejo do estudante - cenas excepcionais. Mesmo com questões relacionadas ao conteúdo, eu amei o filme, ficando, várias vezes, arrepiada com as imagens. Belo, belo, belo, recomendo demais.
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