Filme do dia (140/2022) - "Terceira Guerra Mundial", de Houman Seyyedi, 2022 - Irã. Após perder a esposa e o filho em um terremoto, o sem teto Shakib (Mohsen Tanabandeh) vaga pelas ruas em busca de trabalhos temporários. Ele tem um envolvimento com Ladan (Mahsa Hejazi), uma jovem surda-muda, mas este relacionamento é socialmente inadequado, motivos pelo qual o casal o mantém em segredo. Quando o homem consegue um trabalho junto à equipe de produção de um filme, tudo indica que sua vida entrará nos eixos, mas, na realidade, será o estopim para uma crise ainda maior.
Tenho de confessar que este é um filme difícil de definir, muito embora não traga a complexidade e o hermetismo de outras obras do cinema iraniano - ao contrário, a narrativa é de simples entendimento e flui com facilidade mesmo para quem não tem o hábito de visitar filmes fora do grande circuito. No entanto, a obra nos conduz a caminhos tão inesperados que mesmo sua evidente vocação para o drama é anuviada, em alguns momentos, por pontuais cenas cômicas - mas, não se engane, pois não se trata de um humor leve, quiçá divertido, mas de uma comicidade nervosa, cheia de crítica social e de um tenso incômodo fundado em feridas históricas. A narrativa parte de uma situação banal, ainda que já marcada por elementos trágicos - Shakib é um trabalhador miserável que perdeu família e casa em um terremoto e que vive em busca de "bicos" para conseguir sobreviver. Ele tem um relacionamento sigiloso com uma jovem deficiente que seria socialmente escandaloso caso descoberto. Certo dia, ele é escolhido como trabalhador temporário em uma obra referente às locações de um filme, a qual é conduzida pela equipe de produção. Surpreendentemente, ele cai nas graças do diretor de cinema e acaba sendo escolhido para protagonizar o filme - ele interpretará ninguém menos que Adolf Hitler na obra sobre a Segunda Guerra. Inicia-se, aí, sua descida ao inferno. O cinema iraniano tem marcado terreno em filmes que se desenvolvem como "bolas de neve", isto é, narrativas em que um pequeno fato desencadeia uma série de consequências que se sucedem, sempre de forma majorada - isto é perceptível, por exemplo, nas obras do ótimo Asghar Farhadi, como "À Procura de Elly" (2009), "A Separação" (2011) e "Um Herói" (2021) - e que, aqui, toma proporções desmedidas. O que deveria ser a grande chance de Shakib mudar sua via torna-se, na verdade, um ralo que o "suga" para um verdadeiro e crescente pesadelo. À partir de decisões precipitadas e equivocadas, o protagonista irá se enredar em situações cada vez mais graves e com menor perspectiva de sair de forma ilesa. Este "formato" da narrativa inicialmente leva a algumas situações cômicas, que levam o espectador a rir aqui e ali, mas, a gravidade paulatina dos acontecimentos, rapidamente retiram qualquer sorriso do público. Assim, quanto mais perto do fim, mais tenso e trágico o filme se torna, até o desfecho contundente e com elementos catárticos. Questões que merecem ser pontuadas: a obra é claramente metalinguística, e não são poucos os momentos em que o filme retrata o filme dentro dele. Outra questão que merece atenção do espectador é uma certa relação entre o protagonista e seu personagem na produção em que está inserido - à medida em que a situação de agrava e Shakib se vê enredado na tragédia, mais ele desenvolve um comportamento violento, despropositado, passional e desmedido, aproximando-se da figura histórica que representa no filme e que levará a um desfecho bem significativo. Terceira e última questão a ser pontuada é a crítica sutil feita à sociedade iraniana, em especial no que se refere às relações sociais de poder e às querelas morais daquela sociedade. A narrativa é linear, em um ritmo marado e crescente. A atmosfera é de tensão e gradual perda de controle. Tecnicamente, ressalto a fotografia nervosa da obra, com inúmeras "câmera na mão" (que, logo nas primeiras cenas, inclusive, quase me despertou um episódio de labirintite, de tão tremida a imagem) e outros tantos travelings e panorâmicas. A fotografia é marcada, ainda, por cores escuras, pouco contraste, brilho e saturação, trazendo certa melancolia à obra. Há pouquíssimas inserções de música e a pouca trilha musical existente jamais é utilizada para manipular emocionalmente o espectador - na maior parte das vezes, as cenas mais tensas e marcantes são muito secas, totalmente desprovidas de música. Quanto às interpretações, o filme é cem por cento de Mohsen Tanabandeh, que interpreta Shakib - o personagem é construído minuciosamente e parte de uma realidade de conformismo a uma situação de desespero e até mesmo revanche (sem spoilers). Fato é que o ator traz muita humanidade ao personagem, tornando-o tristemente crível. Eu, que gosto muito do cinema iraniano, já esperava um bom filme, mas confesso que me surpreendi com sua dinâmica. Visto na Mostra de Cinema de São Paulo, recomendo bastante caso entre para o circuito comercial ou nos streamings.
Comments