Filme do dia (73/2023) – “Um Assunto de Mulheres”, de Claude Chabrol, 1988 – França, 1941. Durante a ocupação alemã, Marie Latour (Isabelle Huppert) encontra-se sozinha com seus dois filhos pequenos numa pequena cidade do interior, enquanto seu marido Paul (François Cluzet) está na frente de batalha. Após realizar um aborto clandestino em sua vizinha, Marie percebe, na atividade, uma forma de ganhar algum dinheiro para ajudar no sustento dos filhos.
Baseada em uma história real, esta obra do diretor Chabrol discute uma das mais importantes questões do universo feminino – o aborto. O filme expõe, de uma maneira talvez pouco contundente – poderia ser mais, na minha opinião -, o quanto a gravidez indesejada é uma âncora na vida de muitas mulheres e o quanto a maternidade compulsória é um fator de dominação masculina: a responsabilidade pelos filhos impede que inúmeras mulheres se desvencilhem de relações fracassadas, tornando-as joguetes não apenas nas mãos de seus companheiros, mas, também, nas da sociedade e do Estado. Sob a desculpa da defesa da moralidade, a liberdade sexual feminina e a interrupção da gravidez indesejada é condenada pelo universo masculino e por uma sociedade marcada pelo patriarcado – na verdade, essas questões são apenas maneiras de manter as mulheres sob estrita dominação dos homens e as leis relativas a elas, decididas tão somente por representantes e legisladores do gênero masculino. A história começa retratando uma mulher simples, de pouca escolaridade, com seus dois filhos – sozinha, já que seu marido se encontra no front, ela tem dificuldade em se manter e às crianças. Quando sua vizinha engravida e seu companheiro rejeita a gravidez, Marie resolve ajudá-la, provocando-lhe um aborto. Outras mulheres vêm buscar sua ajuda e Marie descobre uma rentosa atividade para ajudá-la na manutenção da casa e dos filhos. Quando Paul, seu marido, retorna da guerra, Marie expõe toda a sua insatisfação de reencontrá-lo – a obra, assim, aborda outras questões femininas, como a manutenção de relações amorosas indesejadas, a liberdade sexual, a prostituição, a sororidade e a legislação acerca de “assuntos de mulheres” feita exclusivamente por homens. A narrativa é linear, em ritmo marcado. A atmosfera é um tanto angustiante, pois o espectador prevê que algo poderá dar errado nas atividades irregulares de Marie. É impossível falar do filme sem mencionar o trabalho excepcional de Isabelle Huppert – como é do gosto da atriz, a personagem é profundamente controversa e desde os primeiros minutos desperta sentimentos bastante antagônicos no espectador (e ainda mais no público feminino). Se por um lado, sua Marie é admirável por tomar sua vida nas mãos, tornando-se protagonista de sua história sem aceitar interferências masculinas, se ela se mostra forte, se há momentos em que ela se apresenta extremamente leal às demais mulheres e acolhedora quanto aos seus filhos, por outro lado há momentos em que ela é cruel, egoísta e manipuladora; ela humilha seu marido recém chegado do front de uma forma vil e desnecessária; ela se mostra insensível em algumas situações críticas, muito embora em outras se mostre muito humana. A Marie de Isabelle Huppert é, enfim, complexa, densa e contraditória e isso enriquece demais a obra. O filme tem uma fotografia colorida pouco saturada, em tons frios. A paleta de cores privilegia tons escuros, azulados e acinzentados. Boa parte da música do filme é diegética – Marie adora música, queria ser cantora e canta em inúmeras passagens. No elenco, além do trabalho extraordinário de Huppert, ainda temos o excelente François Cluzet, ator que adoro e que também apresenta um trabalho sólido como o marido humilhado Paul; Marie Trintignant interpreta a prostituta e amiga de Marie, Lucie (Lulu); Nils Tavernier faz o papel do amante Lucien; e Evelyne Didi a empregada Ferdande. O filme é uma obra prima, simplesmente sensacional. Mais do que recomendo, é um filme necessário e obrigatório.
PS – Isabelle Huppert foi agraciada com a Taça Volpi (prêmio de Melhor Atriz em Cannes, 1988), e o filme indicado ao Globo de Ouro (1989) de Melhor Filme Estrangeiro, além de várias categorias no Prêmio César (1989).
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